analise

Leitura numa manhã de domingo. Por Manuel Domingos Neto

General Mourão, agora senador pelo estado do RS. Reprodução

 

Por Manuel Domingos Neto

Depois de um sábado carregado de tensões decorrentes da substituição do comandante do Exército, começo o domingo dando-me à boa literatura: o artigo de João Roberto Martins Filho sobre o general Mourão, publicado na edição brasileira do “Le Monde Diplomatique” (19.01.2023).

Faz tempo que convivo com João Roberto, um colega treinado para ver o mundo pela ótica da Ciência Política. Daí, a primeira coisa a me chamar a atenção foi percebê-lo se apresentando como historiador.

Quem me conhece, sabe de meu gosto pela história e pelos historiadores que agregam ao seu discurso elementos das percepções antropológica e sociológica. Fui formado no auge do prestígio da “história das mentalidades”. Era um tempo em que os profissionais da história primavam na imaginação e na escrita. João escreveu na condição de historiador de vista larga e de zelo pelo requinte literário.

A segunda coisa que me chamou a atenção (e me fez lembrar Alain Rouquié) foi sua observação quanto à dificuldade de analisar atores políticos que agem nas sombras, como os militares em serviço ativo em período de “normalidade” democrática.

João vasculhou o percurso do general Mourão antes e depois de passar para a reserva. Situou suas palavras em conjunturas políticas e circunstâncias distintas. Entremeou suas formulações com observações sobre sua personalidade. Enquadrou o discurso de Mourão no quadro mental prevalecente no quartel.

O artigo facilita a vida do leitor interessado em conhecer as ideias que animam o ativismo político dos oficiais do Exército. Tratando-se de um leitor que goste da democracia, a leitura deste artigo angustia. Não foi o meu caso, não estraguei minha manhã de domingo, talvez porque esteja com o couro grosso: faz tempo que me atormento com a ascensão da ultradireita e com sua larga e profunda penetração nas fileiras. No mais, gosto da boa escrita.

No ano passado, pedi ao João que escrevesse um capítulo de um livro que eu organizava, “Comentários a um delírio militarista”. Tratava-se de passar em revista as proposições da caserna para o Brasil. Meu colega andava cansado, não atendeu ao meu pedido.

Verificando, neste artigo, seus comentários argutos sobre um general que tanto contribuiu para a configuração do período mais sinistro de nossa história republicana, sinto a falta que faz na coletânea publicada.

Há muitos anos atrás eu sugeri ao João que escrevesse sobre a modernização da Marinha buscando elementos nos arquivos de Londres, pelos quais eu passara de raspão. Levei muito tempo mergulhado na compreensão da modernidade militar no Brasil, mas me concentrei no Exército e nos arquivos do Château de Vincennes, nos subúrbios de Paris.

João mandou brasa, remexeu em papeis velhos e enriqueceu a literatura especializada com seus estudos sobre os encouraçados.

Dos trabalhos sobre a modernização do aparelho militar brasileiro ao longo do século XX, fica a dura conclusão: apesar de todo o dinheiro gasto, nos sobraram instituições pouco ou nada preparadas para enfrentar agressores externos, todas dependentes de armas e equipamentos importados, mas com ganas de dominar o Estado e conduzir a sociedade segundo a ótica dos quartéis.

O retrato do general Mourão, pintado por João Roberto, nos mostra que precisamos de outro tipo de militar. Estes de que dispomos não foram criados para obedecer ao poder político que pretenda superar o legado colonial nem para sustentar uma inserção altiva do Brasil no jogo internacional.

Leiam o artigo e vejam se estou errado.

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