Lições de Kerala, estado comunista que virou notícia mundial no combate à pandemia

Atualizado em 25 de maio de 2020 às 21:58
Na fila para distribuição de comida, cidadãos esperam sentados a uma distância segura para evitar cansaço e aglomeração / Divulgação/CPI-M

Publicado originalmente na Rede Brasil Atual:

Por Praveen S.

A imprensa mundial, preocupada em divulgar em tempo real os números de mortos e infectados com o novo coronavírus, começa a voltar os holofotes um pequeno estado no extremo sul da Índia. Com 40 milhões de habitantes, Kerala registra apenas quatro mortes em decorrência da covid-19 e é o primeiro território do país a anunciar o retorno às atividades econômicas.

Nas últimas semanas, grandes jornais da Europa e dos Estados Unidos se dedicaram a entender esse fenômeno e descobriram que os méritos do governo local são anteriores à pandemia.

Kerala possui o melhor índice de recuperação de pacientes de covid-19 e a menor taxa de ocupação de hospitais de toda a Índia – que decretou bloqueio total há dois meses.

Os resultados são ainda mais impressionantes se comparados a países cujos governos subestimaram a pandemia. A taxa de mortes por coronavírus no estado indiano é 0,01 para cada 100 mil habitantes. No Brasil, o número é mil vezes maior. Ou seja, se a taxa de mortes em Kerala fosse equivalente à brasileira, a covid-19 teria feito 4 mil vítimas fatais no estado, e não quatro.

Confira na lista abaixo o que se pode aprender com essa experiência:

1. Agilidade

Kerala foi o primeiro estado da Índia a diagnosticar um caso de covid-19 – em 30 de janeiro, vindo da China. Em 3 de fevereiro, quando o número de infectados subiu para quatro, o governo liderado pelo Partido Comunista Marxista Indiano (CPI-M) divulgou medidas urgentes de contenção.

A primeira decisão foi facilitar o retorno de todos os turistas a seus países de origem. Em paralelo, o governo equipou os quatro aeroportos internacionais do estado com termômetros eletrônicos, encomendou milhares de kits para testagem e passou a rastrear os casos suspeitos.

A partir de então, qualquer cidadão que desembarcasse em Kerala era obrigado a fazer quarentena. Quem teve contato com possíveis infectados, também. Como ainda há dúvidas sobre o tempo de incubação do vírus, o período de quarentena foi de 21 dias, uma semana a mais que no resto da Índia.

Em março, o governo de Kerala identificou as áreas com menor taxa de médicos por habitante e enviou profissionais de saúde da capital para vilarejos isolados, de forma preventiva. No mesmo mês, ampliou os critérios para acesso ao sistema público de distribuição de alimentos.

2. Disposição para aprender

Reagir imediatamente à covid-19 só foi possível porque os gestores tiraram lições de experiências anteriores.

Membros do Conselho de Planejamento de Kerala disseram à reportagem do Brasil de Fato que observaram os erros e acertos da China, primeiro país a identificar o novo coronavírus. O conselho foi criado em 1967 e reúne pesquisadores e cientistas de diferentes áreas para auxiliar o governo local na tomada de decisões.

A convivência com situações de calamidade pública nos últimos anos, segundo conselheiros, tornou a população mais disciplinada e ciente da importância de seguir as recomendações sanitárias dos órgãos públicos. Quase todos os anos, entre maio e julho, Kerala registra inundações. Em 2018, um surto do vírus Nipah matou 17 pessoas no estado, que foi obrigado a decretar quarentenas em alguns distritos. Ao final de cada experiência, o governo acumula conhecimentos e atualiza protocolos de emergência, adaptados conforme a especificidade de cada situação.

A disciplina da população também é resultado de investimentos em educação a longo prazo. Desde os anos 1990, Kerala possui o menor índice de analfabetismo e a maior taxa de escolarização da Índia.

3. Comunicação

O número de novos pacientes com covid-19 em Kerala está em pleno crescimento. Hoje, são mais de 800 casos, dos quais 330 estão ativos. Porém, não há pânico no noticiário local e a população reage com tranquilidade ao anúncio do número de casos. O que explica essa postura, além da quantidade suficiente de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI) no estado, é a capacidade de comunicação do governo.

O ministro-chefe – cargo equivalente a governador – Pinarayi Vijayan faz pelo menos cinco comunicados oficiais por semana. Nos mais recentes, deixou claro que o número de infectados cresceria à medida que as atividades econômicas fossem retomadas.

A divulgação de informações de maneira transparente e centralizada garante que a população compreenda que a situação está sob controle: os números estão dentro da margem estimada pelo governo para a data e o número de mortes não cresceu, graças à obrigatoriedade do uso de máscaras e à manutenção da quarentena para os grupos de risco.

“As pessoas precisam ter informações verdadeiras sobre os desafios que estão emergindo e as medidas que estão sendo tomadas para enfrentá-los. Especialmente quando há muitas incertezas, precisamos ajudar a combater notícias falsas. Elas atrapalham a sanidade das pessoas na luta contra a pandemia”, disse Pinarayi Vijayan em entrevista ao canal indiano Newsclick.

4. Alimento é saúde

A fome tem sido um dos maiores desafios durante o bloqueio na Índia. A população pobre do país ultrapassa os 800 milhões, mas apenas 230 milhões possuem o cartão exigido pelo governo central para acessar o sistema público de distribuição de alimentos.

Em Kerala, o governo local derrubou essa exigência há três meses e assegura a distribuição de grãos para todos os cidadãos, mesmo sem comprovação de renda ou cadastro. O estado também foi o único da Índia a manter o fornecimento de merenda após o fechamento das escolas.

O argumento que sustenta essa decisão é simples: com condições adequadas de nutrição, o sistema imunológico se fortalece e a chance de adoecimento diminui.

Para K. N. Harilal, especialista em políticas de descentralização e membro do Conselho de Planejamento de Kerala, o estado mostra que é possível amenizar o impacto econômico da pandemia mesmo com recursos limitados.

“Você pode não conseguir distribuir grandes quantias de dinheiro, mas deve assegurar os serviços básicos e a alimentação. É isso que Kerala está fazendo, e é o mínimo que outros estados deveriam fazer”, afirma.

Na visão do conselheiro, existe um falso dilema entre saúde e economia, propagado por diferentes governos dentro e fora da Índia. Harilal entende que os dois aspectos são complementares: políticas de garantia de emprego e renda mínima facilitam a adoção de medidas sanitárias, assim como a rigidez das medidas de isolamento garante uma retomada segura da indústria, do comércio e dos serviços.

5. Testagem em massa

Kerala atingiu a marca de 15 mil testes do novo coronavírus no dia 13 de abril, quase um mês antes de estados mais populosos, como Andhra Pradesh. A testagem massiva é uma das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O governo local seguiu o exemplo bem sucedido da Coreia do Sul e instalou quiosques de testagem em vários pontos do estado, facilitando a identificação de casos suspeitos.

O preço pago pelos testes, segundo o conselho, vale a pena. Ao identificar precocemente os pacientes infectados, o Estado garante tratamento na fase inicial da doença, reduzindo a mortalidade e desocupando mais rapidamente os leitos de hospital.

6. Estado não é só repressão

O sucesso de Kerala não começou em 30 de janeiro de 2020. Os conselheiros ouvidos pela reportagem ressaltam que os resultados positivos só foram possíveis porque o estado iniciou sua luta contra a pandemia em condições mais favoráveis que o resto da Índia.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Kerala, por exemplo, é o maior do país: 0,790, considerado elevado pela Organização das Nações Unidas (ONU). A média indiana é 0,467 e a brasileira, 0,699. Quanto mais próximo de 1, melhores os índices de renda, educação e expectativa de vida.

Kerala foi o primeiro território a eleger um governo comunista em toda a história, em 1947. Segundo R. Ramakumar, doutor em Economia e membro do conselho, os níveis de investimento público em educação, saúde e segurança nutricional aumentaram consideravelmente naquela época.

“As mudanças foram tão profundas que, mesmo quando governos não comunistas assumiram o estado – nos anos 1980, por exemplo –, eles precisaram manter as políticas públicas de caráter progressista, porque essa demanda já estava enraizada na sociedade”, explicou, em entrevista ao Brasil de Fato.

Durante a pandemia, rodaram o mundo imagens de policiais indianos agredindo ou constrangendo cidadãos que violavam a quarentena ou andavam sem máscaras. Em Kerala, os agentes de segurança foram orientados a evitar a violência. A ideia era tentar entender por que houve violação.

O principal motivo era o preço ou a falta de equipamentos disponíveis nas farmácias. Como resultado desse diálogo, algumas delegacias foram transformadas em oficinas de costura, e dezenas dos próprios agentes de segurança passaram a costurar máscaras para distribuição gratuita à população.

Com a flexibilização dos bloqueios, 30 mil profissionais de saúde passaram a acompanhar os cidadãos que continuam isolados. A função deles é tirar dúvidas, garantir que todos tenham acesso a alimento e condições de higiene, e encaminhar a hospitalização o mais rápido possível quando houver necessidade.

Ao todo, Kerala registrou 810 casos do novo coronavírus. A Índia registra 142 mil infectados e prevê o fim do bloqueio em 1º de junho.