Lideranças evangélicas repetem discurso de limpeza étnica de Israel, diz cientista político ao DCM

Atualizado em 30 de novembro de 2023 às 17:45
Benjamin Netanyahu

“Se depender do (premiê Benjamin) Netanyahu, Israel vai partir pra cima de vez”: eis o cenário pessimista traçado pelo estudioso mineiro de Campo Belo (MG), morando em Belo Horizonte há 17 anos (MG), Christopher Mendonça, doutor em Ciência Política (UFMG) e mestre em relações internacionais (PUC-MG), que conversou com exclusividade com o DCM. Ele rotula Netanyahu, que já viveu outros governos, como um “populista de extrema direita”, talvez o mais radical da história de Israel.

O professor de Relações Internacionais do Ibmec de Belo Horizonte fala, inclusive, da proposital confusão que se faz entre antissemitismo, compreensível num mundo que vê aflorar o nazifascismo, e o sionismo, seita político-religiosa liderada pela direita judaica, que defende a ampliação à força do território à sua volta – um verdadeiro projeto de colonização sem volta da região.

No Brasil dos adeptos de Jair Bolsonaro, esse grupo, liderado pelos neopentecostais, adotou o nome de “sionistas cristãos” – Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e Israel dona da Terra Prometida.

Confira a entrevista:

DCM – O brasileiro, de um modo geral, tem pouca ideia do que acontece em Gaza, um conflito a 10 mil quilômetros, com uma história complexa, mesmo que tenhamos comunidades desses países aqui. O brasileiro se importa com o que acontece em Gaza?

Christopher Mendonça – Os brasileiros, de um modo geral, com seus tantos problemas cotidianos, têm muito pouca consciência do que está acontecendo lá, estão alienados sobre o conflito -mesmo com a massa de notícias na TV e de vídeos nas redes sociais. Estamos mais acostumados com nossas guerras internas.E porque aqui esses povos convivem bem – pelo menos por hora. Me preocupa a atuação de algumas entidades que se dizem representativas desses povos aqui e que tem radicalizado o discurso, o que não contribui para a paz.

DCM – O que o mundo vem repudiando, com o governo de Netanyahu e sua eliminação em massa de palestinos, é não o semitismo, mas o o sionismo, liderado pela direita religiosa. A gente viveu, e de certa forma, ainda vive, uma divisão muito forte da sociedade brasileira entre petistas e bolsonaristas, partidários de Lula e Bolsonaro. Essa direita religiosa defende um projeto judaico de colonização. Não é bem diferente de antissemitismo?

Christopher – Esse é um fator que explica parte do posicionamento do brasileiro em relação à guerra, ou de uma maioria, em relação à guerra. A maioria é pró-Israel. Esse “sionismo cristão” nasceu de um pensamento conservador que se amplia a partir dos anos ’80, com o crescimento numérico das igrejas neopentecostais, muitas com bases e inspiração nos Estados Unidos, como a Assembleia de Deus, e outras cópias que nasceram aqui, com a Igreja Universal do Reino de Deus, que fez uma capilaridade de pessoas muito grande, e são hoje uma força enorme – inclusive política.  Pra essas pessoas, Israel é um centro de destaque do cristianismo. Isso é preocupante, especialmente se vier a insuflar a xenofobia a determinado grupo. Tenho ouvido lideranças evangélicas repetindo o discurso do Estado judeu da pedagogia da limpeza étnica, o que é um horror. O mesmo utilizado contra os judeus no passado – mas falta memória histórica.

DCM – Israel é uma potência militar e nuclear, o que se vê é um David contra Golias, só que biblicamente invertido. O senhor não acha que Israel, o governo Netanyahu, a pretexto de vingar-se de do ato brutal do Hamas, passou muito das medidas, tal a brutalidade e mortandade dos ataques, destruindo Gaz, como Netanyahu mesmo disse, para “mudar a cara do Oriente Médio”, inviabilizando o Estado Palestino?

Christopher – O conflito é muito assimétrico e muito desse poder militar que Israel tem vem da intervenção americana – financiamento bélico mesmo. Todo o programa nuclear israelense – que eles não assumem, e nem assinam tratados internacionais – é oriundo dos Estados Unidos, sejam os presidentes democratas ou republicanos. Mas, embora tudo tqueb passar pelo crivo de organismos internacionais,  não vou negar que deve estar havendo crime de guerra na Faixa de Gaza. Não estou negando que Israel esteja cometendo um genocídio -como disse recentemente o presidente Lula -, mas isso tem que passar por um processo legal. Os tribunais internacionais vão investigar e no futuro teremos punições.

DCM – O  senhor considera, portanto que, até provas em contrário, Israel está praticando crimes de guerra, apesar da prova final vir de tribunais internacionais, e que há uma clara desproporção de forças, uma, pra não usar palavra mais leve, covardia?

Christopher – Sim, exatamente isso. A desproporção da reação de Israel é um dado, isso é métrico, não há como duvidar que há uma desproporção enorme, inclusive no número de mortos.

DCM – E o que vai restar de Gaza destroçada, vai virar um território israelense anexado?

Christopher – Existe uma possibilidade de o povo palestino deixar de existir como representação autônoma. Netanyahu fala claramente em dominar novamente a Faixa de Gaza – que já foi dominada por Israel no passado. Em 2005, 2006, Israel abandona a Faixa de Gaza, acabou com todas as ocupações e acampamentos israelenses na região, e deixou para que o Hamas, que naquele momento era um grupo político, não terrorista, assumisse. Israel concentra todos os outros palestinos na Cisjordânia, coordenada pelo Fatah. Aliás, discute-se, de forma ainda incipiente, que Israel extermine o Hamas e entregue Gaza ao Fatah. A questão é que a Autoridade Palestina não é reconhecida como autoridade legítima em Gaza. Nesse “day after” da guerra fala-se até na ONU assumir Gaza. Mas é tudo incerto, é tudo sombrio.

DCM – Israel não é um estado coeso sobre o que sua autoridade vem fazendo. Há notícias de que parte expressiva da população de Israel não quer esse massacre dos palestinos – que são, historicamente, seus irmãos.

Christopher – O estado israelense não é monolítico,  pelo contrário, o que estamos vendo nos últimos anos, é uma contestação muito forte das ações do Netanyahu. Ele já foi seis vezes ministro, a última enfrentando muitas divergências no Parlamento. O fato é que Netanyahu é muito contestado, inclusive dentro de Israel, inclusive com manifestações de rua. Isso vindo de alguém que é investigado. Não há nenhum outro premiê que tenha ido tanto à direita quanto Netanyahu, com um gabinete controverso. A rivalidade histórica com os palestinos foi ampliada de forma drástica por seus posicionamentos radicais desde que reassumiu o poder, como um líder populista de direita.

DCM – O que parece hoje é que se você não é pró-Israel, ou se você é pró-Palestina, você está do lado errado da história – aquela discussão que já tivemos entre antissemitismo e antissionista.

Christopher – Essa guerra de narrativas está presente dos dois lados. O antissemitismo me parece minoritário. E o sionismo, muito perigoso, tem sido utilizado numa narrativa deturpada para gerar deliberadamente a islamofobia – o pensamento que o Islã tem que ser retirado da existência. É uma confusão de narrativas intencional.

Christopher Mendonça, cientista político

DCM – O senhor tem conhecimento da Conib, a Confederação Israelita do Brasil, entidade dirigida pelo Claudio Lottenberg -presidente do Conselho Deliberativo do Hospital Israelita Albert Einstein -, com vínculos não só com a extrema direita que governa Israel, como com a extrema-brasileira, com vínculos com o ex-presidente Jair Bolsonaro?

Christopher -Sim, a Conib cuida do braço mais institucionalizado e politizado, e a StandWithUs é uma organização americana/israelense, com sucursais no mundo todo, que tem que se espalhado no Brasil, e é uma espécie de “Think tank” para disseminar os valores israelitas. Só que o que a Conib fez ao convidar Bolsonaro ao Congresso, em plena negociação dos reféns, foi uma postura imprudente, criando um evento paralelo ao governo brasileiro e à sua diplomacia. São todos financiados pela elite israelita brasileira por aqui, pela elite israelita lá, e por entidades americanas, que mandam dinheiro para essas organizações.

Christopher – Assim que o cessar-fogo terminar, a tendência é de um quadro ainda mais devastador, principalmente por conta de Israel, que, após respeitar esse intervalo, vai ter força para ataques ainda mais pesados. Se depender do Netanyahu, Israel vai partir pra cima de vez. Até porque há uma possibilidade grande de que o Hamas se reorganize e que Israel esteja se preparando para ampliar seus bombardeios e invasão por terra, aprofunde ainda mais essa invasão, para “limpar” Gaza.

DCM – Como  o senhor viu a atuação do Brasil na repatriação de brasileiros e o papel que a nossa diplomacia tem exercido na tentativa de uma solução para o conflito? O timing foi correto? Poderia ser feito algo diferente?

Christopher – Eu defendo a institucionalidade da diplomacia brasileira. O embaixador Mauro Vieira, nosso chanceler, que esteve ao lado o ex-chanceler Celso Amorim, agiu no tempo certo para poupar vidas. Tivemos uma diplomacia de alto nível. Eles fizeram tudo o que podiam fazer.

DCM – O senhor tem sido um contundente e persistente crítico da atuação do Conselho de Segurança, uma estrutura criada há 80 anos e que tem 5 países com direito ao veto: A ONU envelheceu? Como está, ainda serve a propósitos graves como mediar uma guerra?

Christopher – A gente não pode desconsiderar a ONU. Só que a ONU, criada nos anos 40, tem que ser renovada diante do novo quadro geopolítico. Só que os países com poder de veto (China, França, Rússia, Reino Unido e os Estados Unidos), que não têm o mesmo poder geopolítico da época da criação da ONU, decidem tudo. A ONU não deve deixar de existir, mas deve incluir novos países capazes de vetar as resoluções do Conselho de Segurança. O Brasil, inclusive. É preciso um Conselho de Segurança mais democrático. A ONU não tem ferramentas capazes de dirimir uma guerra, como Ucrânia e Oriente Médio. Está imobilizada.

Mineiro, jornalista, assessor de imprensa e analista sênior de informações. Ex-professor universitário, repórter e editor de jornais e revistas nacionais. Como repórter, ganhou, entre outros, prêmios Esso, Embratel e Herzog