Publicado originalmente por Stefani Costa, Priscila Valadão e Fernando Araújo na revista Jacobin Brasil
Em Portugal, devido a especulação imobiliária aumentou-se o número de pessoas sem-abrigo. Agora, eles estão denunciando uma “limpeza social” nas ruas antes da Jornada Mundial da Juventude e também relatam más condições nos albergues da cidade e um possível esquema de venda de medicamentos nos Centros de Acolhimento da Santa Casa.
“Dás a este um voo recluso e vês as asas que ele ganha”, disse Ícaro durante uma conversa de quase uma hora debaixo das arcadas da Almirante Reis, a maior avenida da cidade de Lisboa, Portugal, e também a sua morada temporária. O nome escolhido (para preservar a identidade de quem já é alvo constante das mazelas promovidas pelo próprio sistema capitalista) tem como inspiração o jovem personagem da mitologia grega.
Filho de Dedalus, Ícaro sonhava em fugir do labirinto construído pelo seu próprio pai, o arquiteto acusado por um assassinato em Atenas. Condenado pelo Rei Minos ao exílio com o filho, na ilha de Creta, foram ambos enviados para o labirinto que havia sido projetado a fim de aprisionar Minotauro, criatura mitológica com corpo de homem e cabeça de touro.
Por ser um grande inventor, Dedalus resolveu criar asas feitas com penas de pássaros, madeira e cera de abelha para escapar com seu filho. Porém, antes da fuga, deixou claro que o voo deveria ser em altura moderada, distante do sol. Atraído pelo brilho dos raios solares, Ícaro ignorou o conselho e voou cada vez mais alto, tendo suas asas derretidas pelo calor. Com isso, caiu em alto mar e morreu enquanto tentava se libertar do labirinto.
Este labirinto metafórico se remete às ruas, avenidas e estradas das maiores cidades do mundo, que estão se tornando, cada vez mais, o cárcere de milhares de pessoas negligenciadas pelo Estado e que enxergam em suas tendas posicionadas nas abóbadas dos prédios ou debaixo dos viadutos um refúgio para a realidade material que os falta e que escancara a face mais cruel e desumana do neoliberalismo.
Apesar de muitos acreditarem que Portugal é um país socialista, a verdade é que de social se faz muito pouco. No último dia 12 de julho, depois de uma denúncia publicada por uma agência internacional de notícias, veio à tona um verdadeiro escândalo que movimentou a opinião pública portuguesa.
Moradores em situação de rua acusam a Freguesia de Arroios e a Câmara Municipal de Lisboa, presidida por Carlos Moedas (PSD), juntamente com a Associação Vida e Paz, ligada à Igreja Católica, de promoverem uma verdadeira “limpeza social” nas ruas da capital antes da Jornada Mundial da Juventude. O evento, que se realiza nos próximos dias 1 a 6 de agosto, receberá a visita do Papa Francisco a Portugal.
Segundo Ícaro, que vive nas imediações da Avenida Almirante Reis há três anos, membros dessa Associação avisaram as pessoas em situação de rua de que todos deveriam tirar as suas tendas do local até o dia 12 deste mês se quisessem manter os seus pertences. Em troca, seriam realojados em albergues disponibilizados pela prefeitura para pessoas sem moradia. São nesses “abrigos” que parecem estar problemas ainda maiores.
Atualmente, segundo dados do próprio Plano Municipal, 2.328 pessoas estão sem moradia na capital portuguesa, sendo que 1.967 se encontram na condição de sem casa (pessoas que vivem em alojamento temporário) e 361 sem teto (pessoas que vivem nas ruas, pernoitam no espaço público ou que estão alojadas em abrigos de emergência).
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Filisteus
Na manhã do dia 13 de julho, a Câmara Municipal de Lisboa, ao lado de uma equipe enviada pela Freguesia de Arroios e membros da Comunidade Vida e Paz, foi flagrada tentando retirar os sem-abrigo que vivem há muitos meses em barracas ao longo da Avenida Almirante Reis.
Ao ser surpreendida, a Câmara justificou em um comunicado à imprensa que se tratava apenas de uma higienização de rotina no local. Porém, as próprias pessoas em situação de rua e muitos moradores da região afirmaram que as limpezas periódicas existem, mas são feitas às quarta-feiras (sendo que este dia, no caso, era uma quinta-feira pela manhã), dando fortes indícios de que a manobra para tentar esconder os verdadeiros motivos daquela ação não sairia como o esperado.
Segundo Rita Moreira, de 49 anos, as pessoas que permaneceram no local depois da ação só não foram retiradas porque se uniram. Por razões médicas, Rita conta que não há a menor condição de viver em um abrigo.
“Eles estão nos acusando e isso é nojento da parte deles. A verdade é que a Câmara convidou-nos a sair e, dessa vez, nos convidaram novamente com uma nova data: dia 31 deste mês. O Estado português está a nos esconder. Eu e todos os sem-abrigo desta cidade não somos lixo para sermos varridos. Somos pessoas, seres humanos. Ajudem-nos a sermos ouvidos!”.
Para a jovem Madalena (nome fictício), 26 anos, mãe de duas filhas, pensar em voltar para um Centro de Acolhimento é quase um pesadelo. Ela conta que as pessoas não têm ideia do que se passa nesses locais. Quando esteve grávida da segunda filha, teve que fugir do abrigo Mãe D’água para não sofrer um aborto.
Madalena relatou que passou fome. “Eu não conseguia nem comer nesse albergue, que dizem que é ‘o melhor do mundo’. Me colocaram junto de dependentes químicos a ter que levar com fumos e mais algumas coisas”, conta ao revelar ainda que foi obrigada a tomar banho de água fria e dormir em uma obra onde o pai de suas filhas trabalhava na época. “O patrão dele colocou um colchão lá para eu poder dormir, pois no albergue eu não conseguia. E eu estava quase no fim da gravidez”, desabafou.
Maria (nome fictício), que não soube dizer quantos anos tinha ao certo, também afirma que, além do albergue, o balneário (banheiro público) do Centro de Acolhimento Santa Bárbara é um verdadeiro nojo e um dos funcionários do local, de origem ucraniana, está assediando as mulheres que vão até lá tomar banho. “Na última vez que fui, o espelho estava todo sujo e faz 5 dias que ele está assim. Há quatro dias que estão dois pensos higiênicos no balde de lixo e eles não tiram. Então esse senhor está lá a fazer o quê?”, questionou ela, com ar de indignação.
“O homem é atrevido e já fizemos queixa. Além de entrar no banheiro das senhoras, já reportamos a maneira como ele aborda as pessoas, pois não tem o mínimo cuidado para falar, diferentemente dos outros três que trabalham lá”, revela Ícaro, o rapaz de trinta e poucos anos que também já cumpriu pena em uma prisão. Ele disse que lá é possível encontrar melhores condições do que em muitos albergues da cidade. “É como se dizia lá dentro, em cana: ‘Dás a este um voo recluso e vês as asas que ele ganha’, estás a perceber?”.
Segundo Ana Jara, vereadora em Lisboa pelo Partido Comunista Português (PCP), o valor destinado para o Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem Abrigo em 2023 foi de € 4.292.106 (R$22 mil), montante que inclui o financiamento previsto para o funcionamento dos centros de acolhimento, equipes de rua e apoio social às pessoas sem moradia no município.
A vereadora afirma que a melhoria das condições dos Centros de Acolhimento da cidade tem sido adiada sucessivamente. Ela cita, como exemplo, a não realização da reabilitação e ampliação dos centros do Beato e Xabregas. “Nós do PCP (Partido Comunista Português) defendemos que os espaços destinados ao acolhimento das pessoas sem-abrigo sejam de qualidade, com a preservação de intimidade e mantidos em condições de higiene”, afirma a vereadora comunista.
Além de servir sopa azeda, Ícaro alerta que o Santa Bárbara é uma verdadeira “casa de fumo”, alegando, por exemplo, a falta de atendimento de profissionais caso um morador do albergue necessite de ajuda para tomar banho. “Mas se tiver a hora marcada na casa de chuto (sala de consumo assistido de drogas), vem alguém te buscar.”
Depois da ação realizada pela Câmara de Lisboa na Avenida Almirante Reis, o PCP entrou com um requerimento pedindo esclarecimentos a respeito da possível remoção dos sem-abrigo por conta da Jornada Mundial da Juventude. “Até este momento não obtivemos nenhuma resposta. Não deixaremos de condenar e permanecer vigilantes em relação a qualquer ação que atente contra a dignidade humana da população sem-abrigo”, reforça Ana Jara.
O dízimo que agrada a Deus
Desde o anúncio de que Portugal receberia a Jornada Mundial da Juventude, que inclui a visita do Papa Francisco ao país, os gastos para receber o líder da Igreja Católica e chefe de Estado do Vaticano já passam de 70 milhões de euros, aproximadamente 365,4 milhões de reais.
Em julho do ano passado, Carlos Moedas (PSD), presidente da Câmara Municipal de Lisboa, divulgou a disponibilidade para investir 35 milhões de euros no evento. Inicialmente, só o palco projetado para receber o Pontífice à beira do Rio Tejo, custaria 4,2 € milhões (R$182 milhões), mas depois foi anunciada uma redução para 2,9 € milhões (R$21 milhões).
Já o presidente da Câmara de Loures, Ricardo Leão (PS), estimou um investimento entre 9 e 10 milhões de euros, enquanto o gabinete da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes (PS), confirmou a quantia de 30 € milhões (R$156 milhões).
Para o secretário-geral do Partido Comunista Português (PCP), Paulo Raimundo, o problema não reside na visita do Papa, mas sim na especulação que a envolve. Ao sair de uma manifestação pelo direito à habitação, realizada no início do mês no Largo do Intendente, em Lisboa, o líder comunista reconheceu o impacto econômico relevante que um evento dessa proporção gera para o país, porém destacou que iniciativas como a Jornada Mundial da Juventude não podem ser realizadas às custas de um investimento que o Estado não pode suportar.
“Sobre as receitas, vamos ver o que dá. Uma coisa que já sabemos é o nível de despesa. Este é um evento de grande dimensão que está para lá da questão religiosa e que trará milhares de pessoas a Portugal. Isso por si só não é negativo”, disse Raimundo.
Só na cidade de Lisboa, a Santa Casa possui o segundo maior patrimônio imobiliário, ficando apenas atrás da Câmara Municipal da cidade. Segundo dados divulgados pela própria instituição, entre prédios urbanos e algumas propriedades rústicas, a Misericórdia da capital portuguesa detém um total de 659 imóveis. Sabendo da situação, Ana Jara lembra da aprovação do Programa Municipal de Habitação à renda acessível, aprovado por iniciativa dos vereadores do PCP, que prevê o alargamento da oferta municipal de habitação e exige da Câmara medidas efetivas para acabar com o flagelo das pessoas que não têm casa.
“Defendemos um apoio social eficaz e célere para responder às necessidades de um conjunto de pessoas vulneráveis, que em Lisboa é cada vez mais amplo. E concebemos a ação na origem do problema com uma política de habitação que evite os despejos, hoje potencializados pelo brutal aumento das rendas e das prestações para se adquirir uma casa. A política de habitação pública também consiste no investimento e enfrentamento do aumento especulativo dos preços dos bens e serviços e da valorização dos salários e das pensões dos trabalhadores”, esclareceu ela.
A respeito do número de propriedades pertencentes à Igreja Católica, Paulo Raimundo reitera que, mais grave do que essa situação, é o fato de o Estado possuir um conjunto enorme de edifícios e casas e não conseguir resolver a situação da crise de habitação em Portugal.
“São locais que poderiam e deveriam ser convertidos em habitação e que não são. Talvez se o Estado, desse ponto de vista, acompanhasse algumas medidas da própria Igreja Católica, a situação seria melhor do que a que temos hoje”.
Sodoma ou Gomorra?
Nas entranhas do problema dos sem-abrigo na cidade de Lisboa, há também indícios que apontam para um esquema de comércio ilegal de medicamentos entre os Centros de Acolhimento administrados pela Santa Casa de Misericórdia. A revelação foi feita pelo jovem Ícaro, que afirma já ter passado pelos abrigos de Santa Bárbara, São Bento e Santa Marta, todos ligados à Igreja Católica.
Segundo o morador em situação de rua, médicos da Misericórdia de Lisboa, responsáveis em receitar medicamentos psiquiátricos aos sem-abrigo em tratamento, fornecem mais remédios do que o recomendado. Eles conseguem adquirir essas caixas nos Centros de Acolhimento na região da Baixa de Lisboa ou em uma zona de acesso no Martim Moniz e quem passaria essas receitas seriam os próprios médicos da Santa Casa, pois é impossível ter acesso a esse tipo de fármaco sem prescrição médica.
“Se for para arranjar os dentes não consegues nenhuma ajuda, tem que ser a pessoa a pagar na totalidade e depois declarar no IRS (Imposto de Renda). Acho que cada utente consegue até sete caixas por semana. Em coisa de uma hora, uma pessoa passou aqui com um saco cheio de comprimidos. Quem vai controlar se ele vai tomar aquilo tudo ou não? Isso foi comprimido que ele foi buscar, porque ele não tem dinheiro, ainda não recebeu o RSI (Rendimento Social de Inserção)”, explica Ícaro.
Algumas pessoas que vivem há meses na Avenida Almirante Reis alegam que o uso abusivo e o comércio de comprimidos é “sabido por toda a gente”, mas que ninguém se propõe a investigar. Cada pílula é comercializada entre 50 cêntimos a 1 euro e não são apenas cidadãos em situação de sem-abrigo que compram essas drogas, pois elas são vendidas para quem quiser pagar. Essas mesmas fontes apontaram também a instituição Exército da Salvação como parte do possível esquema. Outro fator que pode estar ligado ao uso abusivo desses medicamentos tem a ver com o aumento de casos de violência urbana na região, pois esses comprimidos conseguem alterar e agravar o estado de sanidade dessas pessoas.
“Há muitos ambulantes que têm casas aqui à frente que tomam isso para fazerem as asneiras deles, para terem a ‘guita’ (‘dinheiro’) e os telefones que eles têm. Qualquer pessoa pode comprar. Existem os sem-abrigo que vão ter com eles para obterem, mas como eu disse, tem outras pessoas que moram em quartos, casas e que têm uma vida normal adquirindo esses comprimidos para dormir. Há aqueles que tomam um quarto para descansar ou para ter uma noite relaxada. Porém, há quem tome três ou quatro”, relata.
Além do possível comércio de comprimidos vigente na região de Anjos, Intendente e Martim Moniz, Maria lembra ainda dos amigos que perdeu recentemente. Ela desconfia que ambos tiveram overdose pelo uso abusivo desses comprimidos. “Se não me engano, a Sarinha faleceu entre novembro e dezembro do ano passado. Ela devia ter uns 30 anos, era usuária de crack, tinha HIV, mas não sabemos o sobrenome dela. Creio que o atestado de óbito foi emitido no Hospital São José”, conta.
Ícaro diz ainda que Sara gostava muito de música eletrônica e que nas vésperas da sua morte no Santa Bárbara, ela estava muito feliz. “Disseram que ela bebia, mas eu não vi. Na manhã seguinte, por volta das 7 horas, aconteceu o que aconteceu. O ex-namorado dela agora está casado e foi pai recentemente. Graças a Deus, ele já não está mais em situação de rua”.
Outra história compartilhada foi a de Luís, que também faleceu no abrigo Santa Bárbara, entre os meses de janeiro e fevereiro. Nem Maria, nem Ícaro souberam informar o sobrenome do homem, mas narraram que ele passou o dia todo com a porta fechada e ninguém podia entrar lá, porém, mesmo assim, foi realizada uma limpeza.
“Por que foram fazer limpeza lá no dormitório? No espaço de três meses foram duas mortes assim, repentinas. E não é suspeita. Eu te confirmo isso. Não vejo uma pessoa de consciência mental a tomar cinco comprimidos por dia”, desabafa.
Antes da despedida, Ícaro explicou os motivos que o motivaram a relatar sobre todas essas situações graves durante esta reportagem. Ele alega que, durante a sua última estadia no Santa Bárbara, trabalhou por dias realizando reparos e capinando o pátio do local, chegando a levar amigos para ajudá-lo em alguns serviços.
“Eu ficava lá dentro, cortava todas as ervas. Se não tivesse máquina para cortar, eu picava à mão. Isso era uma forma que eu e os outros tínhamos de ocupar o tempo. Mas depois, com quanto eles contribuem para essas pessoas? Com nada! Não existe o mínimo para dar. O único incentivo ao trabalho são dois ou três cigarros na manhã do dia seguinte”.