Um político anunciado como uma novidade, sem que na realidade o fosse.
Um candidato que apelou à religiosidade, ao nacionalismo e que fez declarações alarmistas em relação ao perigo comunista.
O discurso moralista de que iria acabar com as mamatas estatais e implementar o liberalismo econômico salvador da pátria. A retórica verde-e-amarela e em defesa da família, da tradição e da propriedade privada.
Um político que fugiu dos debates na TV, que mentiu o tempo todo e ainda ofendeu a inteligência alheia ao associar a esquerda com o nazismo e o fascismo.
Um corrupto que contou com imenso apoio do empresariado, dos evangélicos, dos militares – que fizeram declarações duras e ameaçadoras de intervenção em caso de vitória da esquerda – e da grande imprensa (que recorreu a editoriais tendenciosos utilizando “o fugidio conceito de opinião pública para legitimar a própria opinião da empresa jornalística”).
Um representante de um partido nanico, um político despreparado que montou uma equipe repleta de desconhecidos e inexperientes ministros.
Soa familiar?
Pois não se trata de Jair Bolsonaro, e sim de Fernando Collor de Mello.
O livro “1989 – História da primeira eleição presidencial pós-ditadura”, de Cássio Augusto Guilherme (Paco Editorial), esmiúça o contexto social-político-econômico, as campanhas, os partidos e candidatos daquela que foi a primeira eleição depois de 29 anos de regime militar.
Em recente entrevista, Luis Fernando Veríssimo afirmou que “no Brasil a nostalgia é uma força política ainda a ser estudada”. Parece ser este o diagnóstico para que, trinta anos depois, o país tenha enveredado pelo mesmo caminho que terminou em desastre.
Se lançado em 2018, talvez o livro pudesse evitar que muita gente votasse em Bolsonaro. Quem desconhece história, está condenado a repeti-la.
Os paralelos entre aquela eleição e o que ocorreu em 2018 povoam a mente do leitor durante toda a leitura, mesmo que o autor nunca faça isso.
Foi lá em 1989 que começou a patifaria de divulgar que o PT iria alterar as cores da bandeira nacional para o vermelho. Foi ali que as elites, associadas a uma imprensa venal, endossaram o discurso de que a classe média teria que dividir suas moradias com os comunistas comedores de criancinhas.
Como todo ‘mito’ é construído na base de mentiras cabeludas, Collor também teve sua mamadeira-de-piroca. Espalhando o boato de que Lula confiscaria a poupança dos brasileiros, injetou medo na população.
Como num roteiro macabro, no dia seguinte à posse, Collor fez exatamente o que disse que Lula faria.
O confisco foi maldosamente combinado com Sarney antes deste deixar a presidência. Ele concedeu feriado bancário entre os dias 14 e 16 de março, abrangendo a posse no dia 15. Quem viveu, jamais esquecerá. A inflação tinha batido os 74% em fevereiro. Três dias de feriado bancário era algo impensável. Mas as medidas anunciadas pela equipe econômica enquanto os bancos estavam fechados (não existiam operações via internet), revelaram que o pesadelo era ainda pior.
O livro de Cássio Augusto Guilherme aborda todos os acontecimentos que envolveram aquela eleição: A entrada do aventureiro Silvio Santos faltando 15 dias para o primeiro turno, o empenho de Edir Macedo pelo candidato Collor, a imensidão de candidatos nanicos.
Mas se algo chama atenção na obra, é a atuação da imprensa contra a possibilidade de Lula ou Brizola serem eleitos.
Os editoriais repletos de preconceitos, as manchetes em letras garrafais com a grotesca chantagem do presidente da Fiesp afirmando que 800 mil empresários deixariam o país na hipótese de vitória de Lula, o endosso a mentiras e denúncias falsas como o caso Lubeca, a contratação de institutos de pesquisas pra lá de suspeitos.
Aborto, censura, invasões incendiárias do MST, terrorismo, guerrilheiros treinados em Cuba, o suspeitíssimo sequestro de Abílio Diniz. Os jornais (com protagonismo do Estadão, cujo editor era Augusto Nunes) descreviam um cenário de terror quando se referiam ao PT.
Até que veio o golpe final. E foi golpe. Até a Globo admitiu e já não é mais segredo para ninguém, mas o livro explicita como Roberto Marinho orientou a Boni de Oliveira a entrar em contato com a equipe de Collor a fim de colaborar com um melhor desempenho do candidato no derradeiro debate do segundo turno.
Todo o aparato global foi colocado à disposição de Collor (o editor Alberico Souza Cruz incluso).
Depois disso ocorreu a já famosa edição veiculada no Jornal Nacional, com tempo de exposição maior a Collor e uma manipulação vergonhosa. Collor, com valiosa ajuda do “Sergio Moro” da época, venceu.
O resto é história. E por isso mesmo deve ser estudada, lida, relida e transmitida.
É bom relembrar, inclusive, que o período militar nos legou uma inflação em patamares estratosféricos além de uma sensação generalizada de corrupção captada e prontamente utilizada como plataforma pelo ‘outsider’ Fernando Collor. Despreparado e falastrão, ele arruinou o país depois de ter quebrado o Estado de Alagoas devido seus conchavos com ruralistas.