Uma pessoa que realmente me dá muita saudade é o professor Wanderley Guilherme dos Santos. Confesso que de vez em quando verto algumas lágrimas, lembrando de nossas noitadas no Almir, o restaurante árabe em Copacabana, onde costumávamos nos encontrar, para beber vinho, nos empanturrar de kibes e contemplar o show das odaliscas.
Na verdade, mais que uma saudade pessoal, afetiva, que é grande, pois éramos amigos, sinto falta de sua inteligência e visão crítica.
Gosto de imaginar que ele estaria, como eu e tanta gente, profundamente aliviado com a derrota que infligimos ao bolsonarismo obtuso e extremista. Ele faleceu em outubro de 2019, aos 84 anos. Viveu uma vida rica e produtiva. Escreveu inúmeros livros, alguns dos quais se tornaram clássicos da ciência política brasileira. Foi amigo de seus amigos. Teve muitas namoradas. Seus filhos são pessoas maravilhosas e cheias de talento. Não precisamos ficar tristes com sua morte, em si. Apenas saudosos de seu espírito sardônico e seus insights originais, que nos ajudariam bastante a construir uma opinião embasada sobre os rumos políticos do país.
Os últimos anos de sua vida, infelizmente, foram marcados por sua angústia imensa diante da conjuntura nacional. Não estava sozinho. Todos sofremos tanto naqueles anos! A crise política se instalou abruptamente no país. Alguns consideram que a coisa começou a degringolar a partir das famosas jornadas de junho de 2013. Outros que teve início com a Lava Jato, em março de 2014.
“Estou sofrendo uma espécie de depressão cívica”, me disse uma vez, em algum momento entre a chegada de Temer ao poder e a vitória de Bolsonaro. Partilhávamos a preocupação de que o Brasil se tornaria uma dessas nações zumbis, morta-vivas, que abundavam pelo planeta, às quais ninguém mais presta muita atenção, a não ser quando experimentam alguma catástrofe. Elas, essas nações, se arrastam pelas décadas, repletas de pobreza, injustiça, desesperança. Até pouco tempo, parecia que a maior parte do mundo subdesenvolvido encaixava-se nessa categoria.
De anos para cá, algo mudou no concerto das nações. Quem diria que a Guatemala voltaria dos mortos? Que a esquerda venceria na Colômbia? Que a África, finalmente, se reapresentasse ao mundo com índices impressionantes de desenvolvimento econômico! Que a China se tornasse a maior potência industrial e tecnológica do planeta? Que a Rússia voltasse à vida com uma economia pujante, crescendo a taxas superiores a toda a Europa? E que o Brasil, enfim, emergisse do túmulo sinistro no qual suas elites o haviam enterrado por cinco ou seis anos, e retornasse ao debate mundial com enorme força, ao mesmo tempo exibindo uma economia vibrante e diversificada, e com um saldo comercial superior a 100 bilhões de dólares ao ano!
Seria deselegante tentar adivinhar o que ele diria do governo Lula e do mundo. Sobre o mundo, na verdade… o professor não era tão interessado em política internacional. Seu negócio era o Brasil. Esta era sua obsessão. Tenho certeza que ele ouviria minha opinião, leria meus artigos, e eu me sentiria um pouco mais inteligente e útil apenas em saber disso e ter o seu feedback.
Um dos temas sobre os quais conversávamos, sobretudo antes de tudo degringolar, ou seja, antes do impeachment da Dilma, e que por alguma razão é um tema tão central para os formadores de opinião em nosso país, era a posição que deveríamos assumir perante um governo progressista que ajudamos a eleger, mas que sofre as profundas contradições características do nosso complicado sistema político.
Deveríamos assumir uma crítica radical, de maneira a empurrar o governo à esquerda? Até que ponto, nos preocupávamos ontem, e nos preocupamos hoje, isso acabaria gerando mais instabilidade política, enfraquecendo o governo e fortalecendo a direita? Não somos bobos, porém, e temos consciência do oportunismo que floresce a partir desse dilema. Um governo que não é criticado por sua própria base acaba apodrecendo por dentro, porque se burocratiza. Quem está dentro, ocupando cargos, se refestela no conforto da estabilidade que somente um emprego público pode oferecer no Brasil. Mas essa situação faz o governo definhar e uma nova crise, maior que anterior, ameaça engolfar não apenas o governo, não só a economia de hoje, mas algo mais grave, que é o nosso futuro, cancelado por uma espécie de “ditadura da lacração”, mais interessada em lutar contra o banheiro unissex do que em modernizar a mobilidade urbana, sofisticar nosso tecido produtivo e encontrar uma posição mais vantajosa para o Brasil na divisão internacional do trabalho.
Vamos direto ao ponto. O que devemos fazer diante dos problemas, erros, deficiências e desafios do atual governo Lula?
Ele está indo bem? Devemos empurrá-lo ou não mais à esquerda? É verdade que ele está perdendo a aprovação?
A principal vantagem de termos uma formação filosófica (com perdão da pretensão, mas já aprendi que a pior forma de vaidade é o excesso de “modéstia”) é uma preocupação conceitual maior. Por exemplo, o que entendemos por… esquerda?
Por trás do discurso de “empurrar o governo para a esquerda” há muito chauvinismo, portanto.
A propósito, é um bom momento para recuperarmos o significado desse termo.
Segundo o Chat GPT 4, chauvinismo é um termo que se refere a uma lealdade ou devoção exagerada e irracional à própria pátria, grupo ou causa. Originalmente, o termo surgiu na França e é derivado do nome de Nicolas Chauvin, um soldado francês que supostamente tinha um patriotismo extremo e irracional. Hoje, chauvinismo é usado em um contexto mais amplo para descrever atitudes de superioridade ou preconceito em relação a outros grupos.
Perfeito, meu amigo GPT!
Sectarismo e chauvinismo são dois vírus conceituais perigosíssimos para a esquerda, e eles começam a se espalhar exatamente quando o conceito “esquerda” é usado de maneira leviana ou superficial, para justificar mais a própria opinião pessoal do que para fundamentar um conjunto de ideias profundamente complexas e frequentemente contraditórias.
Tentemos sair do abstrato e vamos dar alguns exemplos concretos.
Os movimentos de esquerda têm um compromisso histórico com a educação pública. Uma educação pública de qualidade pressupõe a defesa de financiamento estatal generoso com o setor, valorização salarial de servidores e professores, além de investimento em pesquisa, tecnologia e infraestrutura.
Uma posição política que defenda cada vez maiores aportes estatais ao setor de educação, portanto, somente será observada pela esquerda do espectro político.
Entretanto, e sempre haverá um entretanto, não é só isso. O desafio de aprimorar a alocação dos recursos destinados à educação, combater o fisiologismo e a burocratização do setor, e adequar da melhor forma possível o financiamento geral da educação ao orçamento público possível diante da correlação política das forças que dominam o Estado, aí incluído o legislativo, também deve ser uma tarefa da esquerda!
O mesmo tipo de raciocínio vale para a Saúde.
Gostaria de ir mais fundo. Estou cada vez mais convencido de que a educação moderna do povo será um processo cada vez mais complexo, ligado não apenas às instituições especializadas, ou seja, às secretarias, órgãos e ministérios dedicados exclusivamente ao tema, mas que deverá envolver toda a máquina do Estado e toda a energia da sociedade. Devemos criar uma cultura política voltada à educação popular, que inclui o estímulo à curiosidade científica, à participação política, ao amor pela cultura e artes.
Não se pode falar em educação popular, por exemplo, sem considerar o problema da mobilidade urbana. Um trabalhador que desperdiça uma grande parte de seu dia dentro de um transporte desconfortável, não apenas não terá tempo para se instruir, como será consumido por essa espécie de rancor político que vem devorando o espírito democrático no mundo inteiro!
Falemos na greve dos professores e servidores das universidades federais.
É um assunto muito delicado, muito mais do que parece à primeira vista, porque uma greve como essa, por mais que seja importante para chamar atenção do governo para as dificuldades enfrentadas por quem trabalha nessas instituições, cobra um preço alto, que é prejudicar, de fato, a formação dos estudantes, e frustrar as famílias que tanta esperança depositam nas possibilidades de emancipação social que elas representam. A greve prejudica os estudantes mais pobres, naturalmente. Os jovens de famílias de classe média complementam sua formação com os recursos que têm em casa. Os pobres, não. Ao mesmo tempo, como chamar atenção do governo? Como efetivamente exigir que ele preste atenção à deterioração na renda de professores e servidores e na infraestrutura das universidades e institutos federais?
Dirigentes sindicais, ao contrário do que pensam seus críticos, possuem geralmente excelentes níveis de bom senso e objetividade, e por isso esse tipo de greve, embora seja tão romantizada entre grupos de esquerda, tem sido rara. A crítica de que se faz greve contra o governo Lula, e não se fez contra Temer ou Bolsonaro, esquece um fator básico: a decisão de iniciar uma greve pressupõe um mínimo de autoconfiança por parte dos trabalhadores, e um mínimo de confiança entre as partes.
Mas o problema maior do país não é esse. A greve deverá terminar a qualquer momento, e professores e servidores sairão dela numa situação melhor do que entraram. Talvez não conquistem ainda, nesse momento, tudo que desejam, mas terão perspectivas mais otimistas e haverá mais investimento em infraestrutura das universidades.
Vamos adiante. Quais são os principais críticos do governo Lula? Quais são aqueles que têm razão, quais os que não têm? E como a imprensa independente deve se posicionar diante dessas críticas? Ou melhor, até que ponto a imprensa independente deve se juntar a essas críticas?
Eu identifico quatro grupos extremamente críticos ao governo Lula: dois à direita e dois à esquerda.
Os críticos mais perigosos estão à direita, pela razão óbvia que são mais fortes, com muita presença na mídia, nos setores produtivos, na classe média, no legislativo federal, além de ocupar a maioria das prefeituras e dos governos de estado. Esses grupos têm o poder de, efetivamente, derrubar o governo, caso este cometa algum erro mais grave. Além disso, eles se beneficiam desse conservadorismo popular difuso, do qual tentam ser representantes, sobretudo no campo dos costumes.
O seu ponto-fraco, a razão pela qual perderam as eleições nacionais em 2022, e porque as chances de derrubarem o governo Lula são quase inexistentes hoje, é que esse conservadorismo popular não é tão conservador assim. O povo brasileiro, em sua maioria, não é tão reacionário como costumam falar alguns analistas com tendências apocalípticas. Em economia, não é mesmo. O povo defende a Petrobrás, a educação pública, a saúde pública, o investimento estatal em infraestrutura, e governos fortes, capazes de dobrar a cobiça dos grandes grupos econômicos. E também não é tão conservador assim nos costumes, como se apregoa por aí, haja vista seu entusiasmo nas festas populares, como Carnaval, São João, Réveillon, shows públicos, etc. As pesquisas que, supostamente, mostram o conservadorismo do povo pecam frequentemente por incompetência, preguiça e oportunismo. O fato concreto é que um povo que levou o Partido dos Trabalhadores, com suas bandeiras vermelhas, à presidência por cinco vezes, desde a redemocratização, não pode ser tão conservador assim.
Como ia dizendo, são dois grupos à direita a criticar o governo. O bolsonarismo e os neoliberais. Em 2022, a chamada frente ampla conseguiu apoio de uma boa parte dos liberais, dividindo a direita, mas não sei se em 2026 esse fenômeno se repetirá.
O bolsonarismo, ou a extrema direita, tem muita força eleitoral e muita capacidade de mobilização nas ruas e nas redes sociais. Os neoliberais, por sua vez, dominam a mídia mainstream no Brasil e no exterior.
A redução da popularidade de Lula nos últimos meses se explica porque ele perdeu o apoio dos neoliberais, e por conseguinte de todo o poderoso ecossistema midiático neoliberal presente no país.
À esquerda, temos dois grupos críticos, e que embora não representem tanto perigo imediato para o governo, pois sua representação institucional é baixa, fazem barulho, constrangem e machucam o governo, tanto por trazer verdades incômodas, como por marcar posições radicais (necessárias e úteis, às vezes, sectárias e tolas, em outras).
Mas continuemos isso mais tarde. Chega por hoje. Na segunda parte do post, gostaria de refletir, junto com vocês, sobre alguns erros conceituais e estratégicos que vejo se proliferar na esquerda.
Originalmente publicado em O Cafézinho