
O ex-ministro José Dirceu concedeu entrevista ao DCM nesta terça-feira (23), diretamente de Brasília, e analisou o discurso do presidente Lula na abertura da 80ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da ONU.
Dirceu destacou trechos importantes da fala de Lula, comentou a atual tensão entre Brasil e Estados Unidos e avaliou os desdobramentos do cenário após as declarações de Donald Trump. Além disso, abordou as manifestações do último domingo, a PEC da Blindagem, o PL da Anistia, as emendas impositivas e as eleições do próximo ano.
LULA MOSTROU NA ONU POR QUE É UM DOS PRINCIPAIS LÍDERES DO MUNDO HOJE
Muito importante não é o cumprimento do Trump ao Lula. Nós estamos no mundo da diplomacia e da real política; importante é o discurso e o impacto que tem no mundo e no Brasil. Lula, evidentemente, é um estadista mundial, talvez um dos principais líderes do mundo hoje e, para o Brasil, é uma potência. Muitos, pelo complexo de vira-latas, insistem em não enxergar que o Brasil é uma potência — e não só porque é a sétima economia, mas também porque é o quinto em território, o oitavo em população e é um país que tem todas as condições, em 10 ou 20 anos, de se tornar uma potência como país desenvolvido com justiça e igualdade social, com desenvolvimento tecnológico e, inclusive, com poder militar.
Portanto, Lula, ao se colocar como defensor da democracia, da soberania brasileira e da Carta das Nações Unidas, ao se opor às sanções, chantagens e guerra comercial, ao defender o povo palestino, ao trazer de volta a agenda do combate contra a pobreza e contra a fome no mundo, ao deixar claro que é preciso combater o fascismo, a extrema-direita, o ódio e a violência, e ao retomar a agenda — que é muito brasileira — da questão climática, se coloca, evidentemente, como um dos líderes do mundo e insiste, inclusive, em reorganizar, não pela guerra nem pela imposição, essa ordem mundial pós-guerra que deu nascimento à ONU.
Evidentemente, se há possibilidade de diálogo do presidente dos EUA com o presidente do Brasil, nós vamos voltar para uma realidade que sempre foi comum, quase que rotineira. O presidente Lula governou com o presidente Bush, com o presidente Obama e depois voltou a governar com o presidente Biden.
Bush tinha uma agenda internacional com a qual nós não concordávamos, e os contenciosos comerciais, tecnológicos e de patentes, diferentes que existem no comércio, o Brasil sempre foi defensor dos organismos multilaterais. Inclusive, acabamos de assinar um acordo Mercosul–União Europeia, caminha para assinar acordo dos Emirates com o Mercosul e fez acordo para construir a CELAC.
Lula é uma referência para os países da África e da Ásia e está empenhadíssimo nos BRICS e no Sul Global. Vejo que esse é o fato relevante: é bom para o Brasil que se abra canal de conversação e comunicação, como era e sempre foi.
O que foi exceção, e que é inaceitável para nós, não é só o tarifaço: é aquilo que diz respeito aos brasileiros e brasileiras, e não ao governo norte-americano ou à administração Trump — intervenção nos assuntos internos, do poder judiciário e do poder legislativo.
TRUMP TEM REAL INTENÇÃO DE ENCONTRAR LULA?
Acredito que foi dado um passo inicial e a tendência normal da diplomacia, ainda que Trump seja uma exceção nas relações diplomáticas tradicionais, é que seja aberto um canal de negociação. O Brasil sempre esteve aberto a isso em questões comerciais; só não esteve, e não estará, em questões políticas — anistia, big techs etc.
Não vejo nenhuma razão para esse estado que foi criado de não-discussão. Porque as sanções, ameaças e chantagens não funcionarão contra o Brasil; o presidente Lula já deu provas disso.
O Brasil tem uma economia capaz de assimilar esses tarifaços e o governo tomou providências. É uma economia que quer crescer, está resistindo e não cresce por causa dos juros altos. O Brasil hoje é um dos principais destinos de investimentos internacionais e tem muitas oportunidades internas para diferentes setores da economia: energia, setores de fármacos e químicos, agronegócio, captação, saneamento, exportações. Emprego e renda estão crescendo, apesar de todos os juros.
O que o país precisa — e que é a pauta do governo pela qual estamos lutando — é aprovar o pacote que defende a economia popular: isenção do imposto de renda até R$ 5 mil, gratuidade da conta de luz para até 80 kWh, revogação da escala 6×1, consolidação do programa Pé de Meia, o Vale Gás, que também protegem setores da sociedade que precisam dessa proteção social e do Estado. Além disso, aprovar, claro, o pacote que defende a economia diante do tarifaço.
As manifestações do último domingo mostraram, principalmente na juventude brasileira, uma grande insatisfação com a anistia, a PEC da Blindagem e com a negativa de discutir uma pauta que interesse ao país.
CASO LULA ENCONTRE TRUMP, O TARIFAÇO PODE CAIR?
Não tenho elementos para responder essa pergunta e creio que ninguém tenha. O que conhecemos do modus operandi do presidente Trump, de sua ação política e de sua personalidade, é que suas ações aparentemente não têm lógica, mas sempre têm — só são inesperadas.
A tentativa do que ele está fazendo é repetir a desvalorização do dólar por meio das importações e o crescimento interno da economia americana, pela reindustrialização, como se fosse possível criar uma nova classe média trabalhadora nos EUA. Isso está desvalorizando o dólar. Nixon e Reagan fizeram isso, mas com a China, a Índia, o novo mundo, é improvável que isso tenha consequência, ainda mais com a crise política, social, energética e habitacional que a Europa está vivendo.
O mundo está precisando de concertação. Por isso, a palavra e a presença do presidente Lula na ONU hoje dão uma luz nesse caminho. Por isso, a importância dos BRICS e do Sul Global: porque isso equilibra o mundo e não fica só a hegemonia norte-americana. O mundo quer encontrar outros caminhos.
Porque as questões climáticas, da pobreza, da fome, que o presidente Lula destacou, ou de buscar a paz na Europa — entre Ucrânia e Rússia — e no Oriente Médio — entre Palestina e Israel —, são as questões mais urgentes. Não vejo como os EUA, com a dívida pública que têm, com risco de recessão, possam fazer com que esse caminho de sanções perdure.
É bem provável que, nas eleições americanas de novembro do ano que vem, o povo estadunidense se manifeste, talvez em oposição a essas políticas.
E há um elemento muito importante para os brasileiros e brasileiras: o que Trump está fazendo nos EUA é o que a direita brasileira, que apoia Trump e a família Bolsonaro, quer para o Brasil? Atacar imigrantes, negros, liberdades políticas, direito de imprensa, direitos da mulher, universidades, violar os direitos civis? Cada país deve ter liberdade, independência e soberania para defender o seu destino.
MULTIPOLARIDADE – HÁ OUTROS MERCADOS POSSÍVEIS?
A economia brasileira tem capacidade de se adaptar às crises. Passamos pela “marolinha” de 2009, pela crise de 2014 e 2015, pela pandemia. Temos criatividade e, muitas vezes, vamos para o sacrifício.
Temos novos mercados: Vietnã e México, por exemplo. O Brasil é um país altamente desenvolvido e, muitas vezes, subestimamos isso. O dólar está perdendo valor, e a Europa, o Japão e a China começam a tomar medidas para não depender dele.
O próprio Pix é uma moeda, assim como a criptomoeda. Temos que confiar que conseguimos resolver nossos problemas, mantendo o bem-estar das nossas famílias para constituir bem-estar social sem dependência.
FALA DE LULA SOBRE A CONDENAÇÃO DE BOLSONARO NA ONU
O Brasil não vai aceitar dar anistia para quem destruiu a casa do povo. Não foram baderneiros: eles queriam tomar o poder. O que mais destruiriam se tomassem o poder?
Há uma aliança internacional conservadora que, através de recursos e big techs, está estimulando campanhas internacionais organizadas para derrotar governos.
Ontem mesmo vieram sanções contra empresas e contra a esposa do ministro Alexandre de Moraes, mas isso não vai mudar as direções do Supremo ou do Congresso brasileiro.
É óbvio que tem setores da sociedade apoiam a anistia e Bolsonaro — e eles têm todo direito de lutar por isso, faz parte da democracia. Mas nós lutaremos para que não ganhem, e não é o que majoritariamente a sociedade brasileira quer.
A IMPORTÂNCIA DO DISCURSO DE LULA SOBRE O EXTERMÍNIO EM GAZA
A comoção sobre isso já existe. É só você ler os jornais europeus para ver que há manifestações em todas as grandes capitais do mundo e na ONU. Gaza foi destruída, com dezenas de milhares de inocentes assassinados. O presidente Lula, lá atrás, foi o primeiro a falar sobre o risco de genocídio.
E temos autoridade para falar sobre isso porque, desde sempre, defendemos o cumprimento dos Acordos de Oslo e das fronteiras entre Israel e Palestina. Agora, acusar o governo brasileiro de antissemitismo, como? Sempre apoiamos a integridade territorial, a segurança e a autoridade do governo de Israel — sempre com a solução dos dois Estados.
Então, é preciso encontrar a paz e respeitar o povo e a nação palestina em seu direito de ter sua terra e seu território, para que viva pacificamente. Ou se pretende a aniquilação e o êxodo completo?
O BRASIL NAS RUAS CONTRA A PEC DA BLINDAGEM E GOLPISTAS
Os atos já interferiram nos ânimos do Congresso. Não vejo condições políticas de colocar a PEC em votação, ainda mais porque o Senado já deixou claro que não aprovará. O que não for PEC o presidente pode vetar. Não vejo clima no país para o PL da anistia ou para a PEC da Blindagem, tampouco no Congresso.
Temos que mudar o Congresso Nacional e realizar uma reforma política profunda. Mas as pesquisas já demonstram o repúdio da população contra essa PEC e esse PL e, ainda, o apoio explícito às emendas impositivas, bem como ao fim da precarização do trabalho — melhorando a escala de trabalho — e à reforma tributária progressiva, taxando os ricos.
Com a situação do tarifaço e a intenção de afetar nossa soberania para defender a família Bolsonaro, isso mexeu especialmente com as reações da juventude brasileira.
ELEIÇÕES EM 2026
O bolsonarismo tem sua expressão democrática e direito de existir, desde que não seja para dar golpe de Estado. A maioria do eleitorado não é de extrema-direita, é de direita. O que o eleitorado vai decidir, tudo indica, é que em 2026 Lula seja eleito — temos uma grande aliança —, enquanto eles têm quatro candidatos e não têm nenhum.
EDUARDO BOLSONARO SERÁ CASSADO?
O Eduardo Bolsonaro tem que estar no Brasil. Em qualquer país do mundo ele seria processado e condenado com pena máxima — que, nos EUA, seria, por exemplo, pena de morte. Mas não vamos perder tempo com Eduardo Bolsonaro.
OS 12 VOTOS TRAIDORES DO PT NA PEC DA BLINDAGEM
Eles apresentaram suas razões. Havia possibilidade de acordo com o presidente Hugo Motta de não votar a anistia. Obviamente, temos que votar contra a PEC da impunidade, mas eles já estão pagando por isso, e 53 deputados do PT votaram contra — então o PT votou contra.
Eles podem ter cometido um erro, por razões internas, de boa-fé, ao tentar um acordo e votar contra uma medida inaceitável. É um erro? É, mas não podemos transformá-los em nossos adversários. São deputados e deputadas que defendem os interesses do povo; não podemos nos perder em questões internas.
PL DA DOSIMETRIA – A FAVOR OU CONTRA?
Eu sou contra; votaria contra se fosse deputado. O poder judiciário é quem reduz a pena. Se quiserem mudar a legislação, que façam. Falo em meu nome; não necessariamente essa seja a posição do PT.
ZÉ DIRCEU VOLTA PARA CARGOS POLÍTICOS?
Se o PT me der a honra, disputarei uma vaga na Câmara dos Deputados e quero que o povo de São Paulo repare a injustiça que fizeram comigo, que está para completar agora 20 anos: minha cassação por razões políticas, para me afastar da vida institucional do país.
Mesmo tentando, não me afastaram da vida política, porque nunca parei de exercer meu papel na construção política do país.