
Por Reynaldo Aragon
A 80ª Assembleia Geral da ONU não é apenas mais uma reunião diplomática. É talvez o encontro mais decisivo desde a fundação da instituição. O mundo arde: o genocídio palestino continua diante de vetos sucessivos dos EUA, o trumpismo ameaça converter o fascismo em doutrina global, a guerra híbrida contra o Brasil se intensifica em tarifas punitivas e restrições diplomáticas, a crise climática avança em meio à paralisia institucional. A ONU parece à beira do colapso — e, paradoxalmente, nunca foi tão necessária.
É nesse terreno que Lula abre os trabalhos. Não como figura isolada, mas como porta-voz de um Sul Global que exige voz e poder. Seu desafio não é apenas discursar, mas disputar o sentido da ONU: arrancá-la das mãos do imperialismo e devolvê-la à humanidade. A instituição não deve ser descartada como ruína; deve ser ressignificada como trincheira contra a barbárie.
A Palestina expõe de forma cruel a falência do sistema multilateral. Cada cessar-fogo bloqueado por um único veto dos EUA mostra que a vida de milhões pode ser esmagada pela vontade de uma potência. Lula precisa ir além da denúncia: propor corredores humanitários vinculantes, sob coordenação internacional, que garantam alimento, remédio e dignidade. A diferença entre retórica e liderança está aí — transformar a indignação em mecanismo concreto de sobrevivência.
O ataque imperial ao Brasil é parte do mesmo enredo. Tarifas de até 50% sobre produtos estratégicos e restrições de visto a ministros e delegados não são incidentes pontuais: são instrumentos clássicos da guerra híbrida. O recado é claro: quem ousa defender autonomia será punido. Mas a resposta não pode ser vitimismo. Lula deve afirmar que não fala em nome próprio, mas em nome do Brasil e, sobretudo, de um Sul Global que se recusa a ser disciplinado.
Ao mesmo tempo, é hora de resgatar a ideia de democracia. O Ocidente sequestrou a palavra e a reduziu a ritos eleitorais, enquanto legitima golpes, lawfare e censura econômica contra governos dissidentes. Lula tem a autoridade de quem já enfrentou a prisão política para defender outra definição: democracia como soma de direitos políticos e sociais, inseparáveis da soberania popular. Não existe democracia com fome, miséria ou algoritmos que envenenam a esfera pública.
Essa disputa exige coragem. O fascismo de hoje veste terno, opera algoritmos e governa pela manipulação do ódio. Trump não é apenas um adversário político: é símbolo de uma ameaça civilizatória. Nomeá-lo é indispensável. Confrontá-lo na ONU não será gesto pessoal, mas histórico. Lula deve deixar claro: resistir ao trumpismo é resistir à destruição da humanidade.
O Brasil tem trunfos. Não busca hegemonia militar, mas oferece ao mundo um projeto de cooperação: combate à fome, justiça social, defesa ambiental e democratização da tecnologia. Esse é o núcleo da multipolaridade que Lula carrega desde os anos 2000, quando impulsionou o BRICS, o G20 e a Unasul. Agora, com o BRICS+ fortalecido e a União Africana integrada, sua visão encontra materialidade.
Por isso a ONU precisa ser disputada como patrimônio dos povos. Ela nasceu para impedir massacres e não pode ser sequestrada por vetos coloniais nem por chantagens de financiamento. Lula deve propor reformas concretas, abrir espaço permanente para África e América Latina, exigir uma governança digital multipolar e afirmar a soberania informacional como eixo de futuro.
O mundo está diante de uma encruzilhada. Ou prevalece o veto imperial, com guerras, desigualdade e fascismo, ou se abre a possibilidade concreta de uma ordem multipolar, justa e sustentável. O discurso de Lula pode marcar o divisor de águas: o momento em que um líder do Sul Global assumiu o papel de estadista, afirmou que outro mundo é possível e declarou que esse futuro começa agora.