Das atipicidades de se viver no Brasil, talvez a mais curiosa delas é a de que não importa o quanto a lógica democrática e soberana nos aponte um norte, somos sempre surpreendidos pelas idiossincrasias do imponderável.
O resultado do julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula decretado pelo plenário do STF obedeceu rigorosamente a essa nossa espantosa inclinação nacional para o que não é correto, justo e probo.
Ainda pior do que se estivesse à deriva, a presidente da suprema corte Cármen Lúcia fez questão de guiar a grande embarcação da justiça brasileira para os desfiladeiros da incompreensão, da arbitrariedade e da desarmonia.
Mesmo com toda uma Constituição a iluminar o caminho a ser tomado.
Sua “estratégia” de pôr em votação o HC antes mesmo das Ações Declaratórias de Constitucionalidade – que repousam inertes nas prateleiras empoeiradas das conveniências políticas – venceu menos pela astúcia do que pela covardia vexatória da ministra Rosa Weber.
Ninguém ignora que foi a manobra procedimental da presidente do STF que edificou o prédio do qual a justiça se prostraria ao topo e à beira. Fazia-se necessário, entretanto, que alguém a empurrasse. A despeito de suas alegadas convicções, Weber cumpriu com primor o papel de carrasco.
Montado o grande cenário para mais um ato da eterna tragédia brasileira, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente mais bem avaliado de nossa história, responsável direto pela retirada de mais de 36 milhões de brasileiros da miséria, recebe o seu castigo por ousar transformar uma colônia em nação.
Enquanto o mundo assiste incrédulo o flagelo imposto pela elite branca nacional ao homem que desordenou o formato da pirâmide social do país e colocou o Brasil no apogeu das relações internacionais, a classe média tupiniquim comemora a iminente prisão de sua única chance de permanecer como tal.
Já na putrefata classe política, o PSDB, bojo de icônicas figuras como Eduardo Azeredo, Aécio Neves, José Serra, Aloysio Nunes, Geraldo Alckmin e FHC, todos livres e inimputáveis, emite nota afirmando que “o exemplo vem de cima e o Supremo fez a sua parte”.
Na esfera militar, acalmados como bestas que recebem o seu sacrifício de tempos em tempos, os velhos de verde-oliva retornam, por enquanto, às suas casernas. Pelo menos por ora, a soberania nacional voltou a ser tema de quinta categoria. Isso os satisfaz.
Produtores, autores e atores de significância inquestionável no circus brasilis, a grande mídia brasileira estoura os espumantes mostrando que limitar-se a informar seu público é para os fracos, aqui, nessa terra de oportunidades mil, os fatos são mercadorias facilmente produzidos ao gosto do freguês, que, obviamente, não é o povo.
Jogado o jogo da política no campo esburacado do judiciário, o maior beneficiário da pelada é um fascista inconsequente com severos transtornos de personalidade que não vê a hora de minimizar o brasão republicano em mais uma mera estrela na bandeira dos Estados Unidos da América.
Sergio Moro, o juiz escalado para definir a partida pelos seus próprios meios, não economizou no jogo sujo. Fantoche de interesses infinitamente maiores e mais obscuros, decreta a prisão do maior líder político da América Latina desconhecendo o que viria a ser uma única prova que sustentasse a sua decisão.
Cego e inebriado pelo poder que lhe emprestaram, não sabe, porém, que com a sua injustiça está contribuindo para a construção de um verdadeiro mito.
A injusta e escandalosa prisão de Lula sob o olhar conivente de todo o Poder Judiciário completa o último item que faltava para a sua biografia para pô-lo ombro a ombro com líderes internacionais da envergadura de Mandela, Gandhi e Martin Luther King.
Não deixa de ser compreensível que da sua pequenez Moro não perceba a grandiosidade do seu inimigo declarado. Porém, a sua ignorância não o salvará do implacável julgamento da história.
Não tardará muito para que Lula, sobrevivente a toda sorte de desrespeitos e ilegalidades que sofrera desde a sua infância, entre para o eterno rol de heróis mundiais enquanto Moro perecerá inerte e impotente na escura e gélida catacumba do esquecimento.
A ninguém é dado o direito de duvidar, assistimos hoje, de maneira incontornável, a criação de uma lenda histórica forjada no país dos absurdos.