Lula, “triângulos do holocausto” e o “paga pra sair”. Por Fernando Augusto Fernandes

Atualizado em 6 de outubro de 2019 às 9:38
Lula. Foto : Ricardo Stuckert/Instituto Lula

Publicado originalmente no Consultor Jurídico (ConJur)

POR FERNANDO AUGUSTO FERNANDES, sócio do Fernando Fernandes Advogados, advogado criminalista e doutor em Ciência Política

Lula – ou qualquer outro preso – pode se recusar a progredir de regime? não.

Por outro lado, já defendemos, em artigo publicado na ConJur em conjunto com José Roberto Batochio, que a liberdade é absolutamente irrenunciável, por questão de ordem pública, alicerçada sobre os princípios que regem a convivência humana. Por esse motivo, qualquer manifestação de vontade desse sentido (portanto contrário à liberdade como direito fundamental) carece de valor jurídico[1].

A Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, refere-se aos direitos à vida, à integridade pessoal, à proibição da escravidão e da servidão, à liberdade pessoal, de expressão e de crença, bem como a garantias processuais como a presunção de inocência, enquanto direitos “essenciais do homem que não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana” (Preâmbulo). Esses princípios foram consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos do Homem[2].

Por natureza, as normas do ordenamento jurídico brasileiro estão sujeitas a controle de convencionalidade, devendo respeitar os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Congresso Nacional. Pela lógica do próprio ordenamento jurídico-penal brasileiro, não há exigência de uso de tornozeleira para a progressão de regime.

Determina o artigo 115 da LEP que “o juiz poderá estabelecer condições especiais para a concessão de regime aberto”, sem prejuízo das hipóteses previstas em seus incisos, tais como (i) estabelecimento de local específico para o dia, (ii) proibição de se ausentar a comarca em que reside e (iii) comparecimento periódico em juízo para informação e justificação de suas atividades. Ademais, nos termos do artigo 116, o magistrado poderá de ofício ou mediante requerimento alterar as condições, desde que as circunstâncias assim o recomendem.

Outrossim, o artigo 117, ainda da LEP, admite recolhimento do beneficiário da progressão de regime em sua residência nos casos em que o reeducando possuir mais de 70 (setenta) anos de idade – como é o caso do ex-presidente Lula.

Verifica-se, pois, que a Lei de Execução Penal não dispõe sobre a tornozeleira eletrônica como instrumento próprio ao regime de execução penal. Com efeito, sua previsão legal consta do Código de Processo Penal, no rol das medidas cautelares diversas da prisão (v. art. 319, IX do CPP).

Ressaltamos, ainda, a vulgarização do emprego dessa medida tornou-se um negócio lucrativo e desnecessário. Já abordamos como a tornozeleira eletrônica, aplicada desnecessariamente tem exercido no mundo pós-moderno um papel de estigmatização de seus portadores, semelhante aos “Triângulos do Holocausto” destinados aos judeus, homossexuais e ciganos durante domínio nazista. [Referência: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/prisoners-of-the-camps https://pt.wikipedia.org/wiki/Triangulos_do_Holocausto.]

O seu emprego desnecessário causa uma grave ofensa à imagem, personalidade e dignidade do ser humano, na medida em que expõe os acautelados no Coliseu midiático, tornando-os controláveis e monitorados como um objeto. Monitoramento esse distinto daquele que hoje faz o pai com um filho que ama, mas sim com todos os requintes de sub-julgamento e pré-condenação.

Não se pode falar em prisão, medidas cautelares e liberdade no Brasil sem atentar às alterações inseridas no nosso ordenamento pela Lei nº 12.403/2011, que alterou os capítulos do Código de Processo Penal referentes a esta matéria. Essa legislação é resultado do Projeto de Lei nº 4.208/2001, que por sua vez tem sua origem no Anteprojeto Grinover, cuja exposição de motivos é essencial para a compreensão da forma como devem ser entendidos os institutos da prisão cautelar e das medidas alternativas após a nova ordem constitucional de 1988.

É pertinente a decisão do min. Rogerio Schietti Cruz, que dissecou o tema, esclarecendo que “ as medidas alternativas à prisão preventiva não pressupõem, ou não deveriam pressupor, a inexistência de requisitos ou do cabimento da prisão preventiva, mas sim a existência de uma providência igualmente eficaz (idônea, adequada) para o fim colimado com a medida cautelar extrema, porém com menor grau de lesividade à esfera de liberdade do indivíduo”[3].

Em sentido semelhante, se posicionou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no paradigmático caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez vs. Equador (2007). Neste julgado, a Corte sintetizou os requisitos que os Estados membros deverão respeitar no tocante às decisões judiciais motivadas, que restrinjam ou privem a liberdade de seus cidadãos.

Os quatro requisitos cumulativos listados pela referida decisão, consagram, em linhas gerais, o princípio da proporcionalidade como filtro necessário à restrição cautelar da liberdade do indivíduo. Em um dos itens listados, a Corte prevê que as medidas de restrição da liberdade dos cidadãos “devem ser necessárias, no sentido de que sejam absolutamente indispensáveis para conseguir o fim desejado, e que não exista uma medida menos gravosa ao direito restringido entre todas aquelas que contam com a mesma idoneidade para alcançar o objetivo proposto” (tradução livre). A restrição da liberdade não apenas deve ser excepcional, mas também proporcional às vantagens decorrentes da limitação de tal direito fundamental.

Vale lembrar que, ainda que em intensidade reduzida, as medidas alternativas à prisão também restringem a liberdade do acautelado. Por esse motivo, no momento de análise da presença dos requisitos para sua aplicação, devem ser consideradas como pertencentes ao mesmo gênero a que pertence a prisão. É nesse sentido que a CIDH, na decisão supra mencionada, demonstra preocupação em assegurar, que qualquer forma de restrição de liberdade dos indivíduos seja, não só devidamente fundamentada, mas necessária e adequada.

Isso porque estatui que a Convenção de Direitos Humanos tem duas diferentes regulações do direito à liberdade: uma geral e outra específica. Enquanto a primeira diz respeito ao postulado geral de que “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais” (art. 7.1, tradução oficial), a segunda trata de garantias capazes de proteger o “direito individual a não ser que privado da liberdade ilegalmente (art. 7.2) ou arbitrariamente (art. 7.3); a conhecer as razões da detenção e as acusações formuladas contra o detido (art. 7.4); ao controle judicial da privação de liberdade e da razoabilidade do prazo da prisão preventiva (art. 7.5); a impugnar a legalidade da detenção (art. 7.6) e a não ser detido por dívidas (art. 7.7)” (em tradução livre).

A sentença que condenou Lula é uma aberração. Avizinhando-se a percepção da opinião pública dos crimes cometidos pelos condutores dessa verdadeira fraude processual, um dos seus principais autores pede a progressão de regime para o ex-Presidente. Sob as luzes da Vaza-Jato, há uma tentativa de esvaziamento dos Habeas Corpus pendentes de julgamento.

A recente decisão da juíza de Curitiba estabelecendo como pré-requisito o pagamento de 4,9 milhões de reais para progressão de regime afronta diretamente o inciso LXVII da Constituição Federa, que veda expressamente a “prisão civil por dívida”. A exigência de pagamento para progressão de regime transforma o juízo penal em executor de créditos do Estado, seja no direito tributário, ou em ressarcimento. O Estado possui meios próprios para a cobrança.

A desumanização da pós-modernidade flerta com sentimentos nazistas e propicia atos falhos como a afirmação do desembargador Santos Laus de que a presença de Lula “está desvalorizando imóveis da região” e que o “ex-presidente sabe que ele não bem vindo”[4]

Lula não pode recusar a progressão de regime, mas isso não obsta que se oponha à aplicação de medidas como a tornozeleira eletrônica. É Estado totalitário aquele que estabelece condições financeira para o pleno exercício da liberdade.


[1] https://www.conjur.com.br/2017-mai-21/lava-jato-pressiona-refens-desistir-hc-esconder-ilegalidades

[2] https://www.conjur.com.br/2017-mai-21/lava-jato-pressiona-refens-desistir-hc-esconder-ilegalidades

[3] STJ – HC 282.509/SP – decisão liminar do Min. Rogerio Schietti Cruz – data da decisão 19/11/2013, fls. 3-4 e 9.) (Grifos do autor)

[4] https://www.conjur.com.br/2019-out-01/lula-sair-pois-desvaloriza-vizinhanca-presidente-trf