Mãe

Atualizado em 21 de julho de 2011 às 12:13
Bons tempos: no colo de minha mãe

“Ela nunca falou mal de ninguém.”

A frase de Laudir não poderia representar melhor o espírito de minha mãe.  Laudir cuidou de minha mãe em seus últimos sete anos, os últimos quatro dos quais particularmente duros por causa do agravamento do Parkinson. Revezavam-se ela e Vanda.  Nas duas nós, os filhos, encontramos, depois de muitas tentativas, as acompanhantes ideais para mamãe: dedicadas, competentes e, grande virtude, sempre sorridentes.

Laudir estava ao lado de minha mãe quando a definiu tão bem com tanta simplicidade. Mamãe estava sendo velada no Gethsemani, onde finalmente ela, mulher de um homem só, foi ao encontro de meu pai, morto há 29 anos.

Estão reunidos, enfim.

Vim ontem de Londres para o enterro. No táxi que levou Camila e eu a Heathrow, falei de minha mãe para a neta com a qual ela foi impedida, pelo Parkinson, de conviver como seria desejável. Sem o poder de síntese de Laudir, disse basicamente a mesma coisa.

Que o legado de sua avó Thereza estava no caráter.

Minha mãe era avessa a fofocas. Se você chegasse perto dela para fazer mexericos, ela dava um jeito de discretamente escapar.

Ela via o lado bom das pessoas. Se tentasse fazer isso e não encontrasse nada, ela preferia o silêncio, simplesmente.

Com frequência recomendei aos jornalistas que trabalharam comigo que ficassem longe dos corredores das fofocas. Eu estava apenas ecoando mamãe.

Era a grande marca dela, mas não a única.

Jamais encontrei, em toda a minha vida, alguém que inspirasse tanta calma nos momentos de ansiedade, medo, aflição.  Na infância, minha mãe parecia ser capaz de nos livrar dos males do mundo. Olhávamos para ela angustiados e ela nos acalmava, a meus irmãos e a mim, com seu semblante doce, generoso, imperturbável. Como pai, sempre tentei reproduzir isso, e levar tranquilidade a meus três filhos. Jamais conseguir chegar perto de mamãe, mas continuo a me esforçar, inspirado nela.

Na nossa pior hora, a doença e morte de meu pai, minha mãe foi quem evitou que mergulhássemos no abismo. Papai era simplesmente tudo para nós, nossa primavera e nosso verão, nosso outono e nosso inverno.

Éramos jovens quando ele adoeceu subitamente e morreu em poucos meses. Mamãe ficou ao lado de papai no hospital o tempo todo. Ligávamos nervosos pela manhã para ter notícias de papai, e a conversa com mamãe era, naqueles dias tão duros, um intervalo de alívio e esperança. Ela, provavelmente graças a um esforço descomunal, conseguia milagrosamente nos acalmar.

A morte de meu pai me transformou. Foi como se o sol sumisse para mim. Me revoltei, me tornei aos 25 anos um homem bem diferente do jovem que fora: uma melancolia eterna pareceu tomar conta de mim. Em minha imaturidade explosiva, achava absurdo que eu pudesse ser feliz quando meu pai sofrera tanto. Cometi todos os erros possíveis ao lidar com a morte de papai. E mais alguns. “Não se agaste contra as circunstâncias”, disseram grandes filósofos como Marco Aurélio.

Pois eu me agastei, e como.

Mamãe teve muito mais força e coragem que eu. Ela tinha dois filhos pequenos, meus irmãos temporões, Kiko e Kika. A vida tinha que seguir para ela, em nome deles. Mamãe foi pai e mãe dos dois. Onde ela arrumou energia para tocar as coisas, jamais soube.

Tenho para mim que mamãe só relaxou quando a filha caçula se casou. Talvez tivesse entendido que sua missão estava completa.

Então veio o Parkinson, facilitado, imagino, pelo cansaço de mamãe depois de uma jornada tão extenuante como a que lhe coube com a doença e morte de papai. Minha mãe era extraordinariamente lépida, e a lentidão imposta pela doença bateu brutalmente em sua alma. Era como se ela se sentisse derrotada pela vagareza compulsória.  Os últimos três ou quatro anos foram especialmente duros. Mamãe foi minada em sua capacidade não apenas de se locomover mas de falar.

Deus, o que não faríamos, meus irmãos e eu, para suprimir essa parte da história de minha mãe e ficar apenas com a outra. Nem assim ela deixou de estar sempre arrumada e com o cabelo impecavelmente armado com laquê: mamãe cuidou do seu exterior como cuidou do seu interior, com afinco, disciplina, determinação.

Já disse mais de uma vez que não acredito em nada, e que detestaria renascer.  Abominaria ter outra mãe que não esta que acabamos de enterrar, meus irmãos e eu.