Seu nome era Chris. Foi meu guia na África do Sul, para onde eu fui em 2010 fazer uma reportagem para a “Viagem e Turismo”, revista que eu dirigia na época.
Discreto, inteligente, orgulhoso de seu país, politizado e mestiço — “coloured”, como são identificados lá. Sob o apartheid, o governo dividiu a população em quatro grupos raciais de maneira arbitrária, baseada na cor da pele: pretos, coloured, indianos/asiáticos e brancos. A mulher do ex-presidente F.W. de Klerk, Marike, definiu a “raça” de Chris como de “não pessoas, as sobras”.
Chris tentava explicar a África do Sul através de sua história e de sua família. Morava na Cidade do Cabo, uma das capitais, o Rio de Janeiro deles, com a linda Table Mountain servindo de cartão postal.
Os mestiços vêem daquela região. Dada a falta de mulheres europeias para acompanhar os colonos no continente, os holandeses, franceses, alemães e ingleses se casavam ou eram amantes das nativas. Em 1950, os casamentos inter-raciais foram proibidos, o que só foi revogado depois do apartheid.
Chris morou num bantustão de mestiços. Havia também os dos negros, em maior número. Bairros imensos, quase cidades, segregados. Era necessário passaporte para entrar e sair. “Nós, mestiços, ficávamos no meio do caminho na sociedade”, me disse. “Eventualmente, para saber se alguém era mestiço ou branco, o policial colocava um lápis em seu cabelo. Se o lápis escorregasse e não ficasse preso nos cachos, o sujeito era branco”.
Não houve, com a queda do regime, a esperada integração com os negros. “Você não resolve séculos de racismo, crueldade, ódio e separação em alguns anos. Os negros apanharam muito. Nós também”.
A tensão racial está em cada canto, cada bar, cada hotel, na rua, nos shoppings. “Madiba [como Mandela é chamado em homenagem a um chefe tribal do século XVIII] conseguiu o mais difícil: impedir que não nos matássemos. Provavelmente, era o que ia acontecer”, afirmou ele. Me mostrou a foto do líder que carregava na carteira. O jornalista inglês John Carlin, autor do livro que deu origem ao filme “Invictus”, de Clint Eastwood, escreveu sobre as duas “missões impossíveis” que o “imenso gênio político” de Mandela conseguiu realizar: “a primeira, convencer seu povo a renunciar à vingança, depois de séculos de humilhação racial; a segunda, persuadir os compatriotas brancos a entregar o poder pacificamente, evitando a muito alardeada guerra civil”.
Fomos conhecer uma das belas praias da Cidade do Cabo. Areia fofa, o azul do oceano gelado, jovens, crianças, famílias. Eu lhe perguntei se ele tinha tempo de ir à praia. “Não. Me traz lembranças ruins. Quando eu era criança, nós só podíamos ficar ali” — e apontou para um monte de pedras que adentrava o mar, separando as duas faixas de areia. “Havia duas cercas para garantir que não invadíssemos”.
Dois garotos jogavam críquete. Um negro e um branco. O branco rebatia a bolinha atirada diligentemente pelo outro. Bom sinal? “Eles não são amigos. O negro é contratado pelos pais daquele menino para treiná-lo”.
A última vez em que vi Chris foi no jardim botânico de Kirstenboch, na Cidade do Cabo. Criado em 1913, é um espetáculo. Chris fez questão de me mostrar uma protea, a planta nacional da África do Sul. Ela existe desde a pré-história, tem um aspecto rústico, mas ganha pela exuberância da cor nas pétalas e no núcleo. Muda de aparência (o nome vem do deus grego Proteu, pastor de Poseidon, que tinha o dom de se metamorfosear em diversas criaturas). A protea dá nome à seleção de críquete.
Ele me contou que gostava de passear ali nos finais de semana com os filhos. Fazia piqueniques e sentava num banco com vista para a Table Mountain, ao lado de um jardim imenso de proteas. “Elas são flores que crescem muito próximas umas das outras e formam grupos fechados”, diz Chris. “Desse jeito, se protegem de vento, chuva, qualquer coisa que tente destruí-las. Acho que é o que Mandela espera dos sul-africanos”.
Leio que uma variedade especial, mais vermelha, brilhante e rara, ganhou o nome de Madiba Protea. Suponho que Chris tenha ficado feliz.