Manifestações de 19 de junho trouxeram novo caráter político e uniram a oposição. Por José Dirceu

Atualizado em 23 de junho de 2021 às 11:18
Protestos contra Jair Bolsonaro do 19J

Por José Dirceu

No último sábado (19.jun.2021), em 336 cidades do Brasil e 47 de outros 17 países, manifestantes saíram às ruas para protestar contra o governo de Jair Bolsonaro. Organizadas pelos comitês Fora Jair Bolsonaro, que reúnem as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, partidos como PT, PSOL, PC do B, UP, PCO,PSTU, PCB e militantes do PSB e PDT e entidades como MST, MTST, UNE, CMP, com apoio, dessa vez, das 10 centrais sindicais e principalmente de mulheres, jovens, negros e negras e suas entidades e movimentos, as manifestações chamaram a atenção também pela presença das periferias nas grandes cidades. E receberam manifestações de apoio do público por onde os manifestantes passavam, com forte repercussão também nas redes sociais.

Há que se destacar o caráter pacífico das manifestações; o resgate do verde e amarelo, as cores da bandeira das quais a direita tentou se apropriar; e o cuidado dos organizadores com as medidas de segurança sanitária. Nenhum manifestante sem máscara –em todas as cidades, os organizadores tinham máscara para distribuir e álcool em gel para a higiene das mãos.

O caráter político das manifestações mudou em 19 de junho. Não se trata mais só da oposição de esquerda, mas de todos que se colocam contra Bolsonaro, fruto e consequência dos 2 anos e meio de desgoverno, da criminosa ação na pandemia –principal tema das manifestações–, do caráter autoritário e obscurantista do governo, de seu fundamentalismo religioso, do machismo, racismo e homofobia, da agressão ao meio ambiente, da vergonhosa política externa, do abandono –quando não verdadeira sabotagem– às políticas de educação, ciência e cultura.

A importância vital de se ocupar as ruas, além de disputá-las com a direita bolsonarista que até pouco tempo as dominava, é superar e derrotar o medo que Bolsonaro busca impor ameaçando o país com a violência das milícias, a politização das PMs (Polícias Militares) e mesmo com “meu Exército” e o fantasma de um golpe militar ou da simples presença dos militares no governo, principalmente depois da não punição do general da ativa Eduardo Pazuello.

Fatos contra

Muitos dirão que Bolsonaro vencerá as eleições com o avanço da vacinação e algum crescimento econômico, com sua base conservadora de direita e neopentecostal e apoio da Faria Lima. Só que os fatos e o novo conspiram contra essa avaliação ou tendência.

Já citei aqui, em outro artigo, a pesquisa Oxfam que revela o avanço do grau de consciência na sociedade brasileira sobre a desigualdade social, a necessidade de uma reforma tributária que taxe os ricos e o apoio ao papel do Estado na diminuição das desigualdades, na promoção da saúde e educação públicas e da habitação subsidiada. Consciência que se amplia principalmente entre as mulheres e os jovens em relação a duas questões também centrais em todo mundo: a desigualdade que atinge as mulheres e o racismo que oprime os jovens negros e as jovens negras.

É um erro de avaliação projetar na eleição de 2022 o cenário de 2018 ou mesmo de eleições anteriores. Outro Brasil está nascendo num mundo em mudança e na América do Sul em rebelião visível e irrefutável onde essas questões são dominantes, como nos mostram os exemplos do Chile e do Peru.

Bolsonaro será julgado pelo conjunto da obra e não por um soluço de crescimento econômico ou pelo temor dos militares. O que vai derrotá-lo é seu autoritarismo, o caráter de extrema direita de seu governo, o modelo de crescimento neoliberal e anti-social que ele aprofundou, sua personalidade e seu discurso.

Oposição reage

Não será a 1ª vez que a oposição vai reagir. Em 1974, depois do terror e da repressão do AI 5, do milagre econômico de 1968 a 1973, o MDB recebeu do povo seu atestado de partido da oposição à ditadura e elegeu 16 dos 22 senadores, 161 dos 364 deputados que existiam na Câmara, impondo uma fragorosa derrota à Arena, que nunca mais venceu eleições, nem mudando de nome para PDS.

A resposta da ditadura para não perder a eleição de 1978 no colégio eleitoral foi a Lei Falcão, que limitava a propaganda na TV a retrato dos candidatos –ou seja, censura total–, o fechamento do Congresso Nacional e a imposição do Pacote de Abril, que mudou a composição dos colégios eleitorais e criou os senadores biônicos, 1/3 do Senado.

Aliás, a ditadura nunca ganhou eleições. Já em 1965 perdeu as eleições para governador em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Depois disso, acabou com os partidos, pôs fim às eleições para presidente, governadores e prefeitos de capitais com o AI 2, iniciou uma repressão generalizada e impôs a censura à imprensa. Cancelou uma eleição presidencial onde provavelmente seria varrida de cena com a vitória de JK.

Não devemos subestimar Bolsonaro e muito menos os riscos da cada vez mais evidente participação dos militares na política, o que é expressamente vedado pela Constituição e, também, pelo Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro.

O caso Pazuello e a recente entrevista à revista Veja do general da ativa Luis Carlos Gomes Mattos, presidente do STM (Superior Tribunal Militar), são provas concretas de como, na prática, vai se impondo como normal os militares opinarem e participarem da política, abrindo as portas para o papel de poder moderador, árbitro ou tutela que historicamente os militares se auto-atribuíram. Isso aconteceu no golpe de 2016, no julgamento do HC (habeas corpus) de Lula e na eleição de Bolsonaro, fatos de que participaram apoiados, naqueles momentos, pela oposição capitaneada pelo PSDB e toda mídia monopolista.

Apesar das reiteradas promessas de acatar as urnas com a ressalva de que “o povo brasileiro tem que saber votar”, traindo conscientemente, ou não, sua profissão de fé democrática, os militares, no fundo, acreditam que o povo não sabe votar se escolhe um candidato de esquerda, categoria na qual incluem até FHC. Trata-se de uma confissão mais do que clara do pensamento dominante nas Forças Armadas.

Estarrecedor é o apoio total dos militares a Bolsonaro e seu governo, à gestão da pandemia e ao próprio Pazuello. Dizer sem se ruborizar, como disse o presidente do STM à Veja, que o governo e o presidente são honestos, que o povo deve votar em quem responde às necessidades do país e citar o ministro da Infraestrutura, Tarcisio Freitas, com exemplo, que os governos anteriores não fizeram estradas e ferrovias, mais do que fugir à realidade dos fatos, é uma falácia. Mais: não criticou a decisão do comandante do Exército de não punir Pazuello, escudando-se no princípio da hierarquia que, obviamente, foi violado no episódio.

Sempre haverá o risco de golpes, pacotes e iniciativas biônicas para fraudar eleições. Mas toda nossa experiência histórica ensina que há somente uma vacina contra atentados desse tipo à democracia: a mobilização, as ruas, a unidade de todas forças democráticas contra os riscos da volta da ditadura, a construção de alternativas que ponham fim à desigualdade social, de gênero e raça e retomem o caminho da democracia rompido com o golpe de 2016 e a Lava Jato, que abriram caminho para a vitória de Bolsonaro.