A especulação imobiliária venceu mais uma em Floripa, num golpe iniciado em 1980, quando o então governador Jorge Bornhausen doou a Ponta do Coral para sua esposa, dona Déa, usar o imóvel para as crianças internas da Fucabem, a Febem local (a primeira-dama presidia a instituição).
O terreno está localizado no mar (daí ser uma ponta) bem na frente do Palácio do Governo.
Nos anos 70, antes da construção da Avenida Beira Mar, estava desocupado, mato crescendo – e nas águas, muito coral e abundância de animais marinhos. Era um ponto de pesca dos manezinhos.
Hoje, olhando de fora, quem passa rápido pela Beira Mar nada vê – mas a batalha pela ocupação dos 14 mil m² da área é feroz.
A encrenca começou quando Bornhausen doou o terreno à mulher no que parecia benemerência. Em três meses a primeira dama achou melhor vender o terreno e usar o dinheiro nas obras assistenciais – assim, ela deu um balão na Assembleia Legislativa: como tecnicamente o terreno pertenceria à Fucabem e não mais ao Estado, a venda seria legal.
Não era. E de lá para cá foi só confusão.
Quem comprou o terreno foi Realdo Gulielmi, um empresário da mineração de carvão, um dos homens mais ricos do Estado à época – óbvio que pobre não compra terra poque não tem dinheiro.
Realdo queria construir um hotel na Ponta do Coral.
Ocorre que o Plano Diretor de Floripa dos anos 70 não permitia – havia bastante terra disponível para o empreendimento até mesmo na Beira Mar, hoje transformada num paredão. Mesmo sabendo, por décadas Realdo tentou erguer seu hotel, manobrando junto à Câmara e tentando mudar a lei, sem sucesso.
A Fundação do Meio Ambiente entrou na jogada e fez bloqueio duplo ao projeto.
Quando houve a redemocratização foi a sociedade que manteve a Ponta livre da especulação. Multidões pediram à AL que retomasse a área, mas nenhuma legislatura desde então ousou enfrentar Bornhausen.
Nos anos 80 e 90 diferentes imobiliárias entraram na corrida para construir ali, cada uma com um projeto mais mirabolante. Mas, neca.
Aí vieram os governos do PT e entrou na confusão o Serviço de Patrimônio da União, reclamando a fatia de marinha, os 33 metros do mar até a avenida, reduzindo mais ainda a área.
As construtoras então passaram a fingir ignorar o lugar. Virou antro de craqueiros e de desocupados. Parecia destinado à paz eterna. Pescadores voltaram ao local.
As construtoras financiaram reportagens de tempos em tempos tentando ganhar corações e mentes da sociedade – e mudanças no Plano Diretor.
O objetivo era mostrar que sob a gerência delas não haveria sujeira – passariam o trator e fariam praças públicas no entorno de sua torre de…um hotel, a mesma coisa que queria Realdo.
Ele morreu e a precária escritura foi às mãos da viúva, irmã do governador Eduardo Pinho Moreira – esta gente morre, mas não solta terra de qualidade.
Na surdina, a família de Realdo pediu à Justiça usucapião – medida que se concede àquele que tenha o poder sobre a terra, de forma mansa e pacífica, por 20 anos, sem contestação.
Medida necessária, porque nenhuma construtora queria erguer sua torre sobre terras sem escritura definitiva.
Não sei qual o critério do juiz para considerar “mansa e pacífica” a ocupação de um pedaço de terra que por 40 anos vem sendo reivindicado pela sociedade como área de preservação natural, de posse contestada desde o primeiro dia.
No governo Temer, o SPU saiu da encrenca, deixando espaço para a Justiça dar usucapião, incluindo nele a área federal – em tese, seria impossível obter usucapião em terras da União.
Ignorando esta banalidade, a poderosa construtora Hantei negociou com a família do agora ex-governador uma fórmula para erguer uma torre de 18 andares, num projeto avaliado em 350 milhões, que promete limpar a área de drogados etc e tal.
Desta vez, ninguém mais reclamou. A turma dos contestadores das antigas esqueceu do projeto. União, Justiça, Fundação do Meio Ambiente, Câmara de Vereadores e Prefeitura entraram num perfeito alinhamento astral em favor das construtoras.
A Hantei saiu na frente e aproveitou para solicitar um aterro no mar para dobrar a área da antiga Ponta e cimentar tudo – oferecendo como recompensa à sociedade a construção de pracinhas e marinas para barcos: os especialistas dizem que o uso por barcos comprometerá a vida marinha no adjacente pantanal do Itacorubi, mas ninguém mais dá bola.
Quem tiver barco pode atracar por lá, pagando uma taxinha à Hantei.
Quando assumiu, o prefeito Gean falou grosso e disse que todas as tentativas de construir na Ponta do Coral estavam condenadas ao fracasso – falou bonito e foi para o abraço da galera.
A maioria dos interessados fugiu, mas era um truque do prefeito. Sobrou a Hantei.
Agora, ela ganhou licença ambiental para aterrar o mar e usucapião, tudo junto. Na semana passada, mais um presente: a ordem judicial para tirar do terreno um barraco de algum MSTezinho local, prontamente atendida.
A PM foi despachada para entregar o terreno à família e a família o entregou à construtora.
Depois de 40 anos da maracutaia entre Bornhausen e o magnata da mineração, a obra vai começar
A Ponta do Coral será um aterro e sobre ele estará o sonhado hotel de 18 andares de Realdo.