Marcia Tiburi: “O diálogo com o fascismo não pode ser dócil”

Atualizado em 10 de setembro de 2020 às 8:45
A ex-candidata ao Governo do Rio, Marcia Tiburi – Mauro Pimentel/AFP

PUBLICADO NA MÍDIA NINJA

POR NATÁLIA DE OLIVEIRA RAMOS

Não faz muito tempo, a palavra fascismo soava como coisa do passado no mundo ocidental. Ditadores como Adolf Hitler, Francisco Franco e Benito Mussolini estão mortos, mas as expressões de autoritarismo têm ressurgido em novas caras. O discurso de ódio que caracteriza este fenômeno político e social aflora, elegendo mandatários e impulsionando um clima de barbárie. No Brasil governado pelo ultradireitista Jair Bolsonaro, o pão de cada dia são as ameaças de censura e tortura para coibir possíveis manifestações populares, o racismo, a xenofobia, a homofobia e o negacionismo quanto à violência de gênero.

Assim como o ex-político Jean Wyllys, a filósofa e escritora brasileira Márcia Tiburi teve que se exilar fora do Brasil depois de sofrer ataques e perseguições de bolsonaristas. No final de novembro, ela esteve em Madri, na Espanha, para discutir sobre seu livro ‘Como conversar com um fascista. Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro’ (Record).

A obra, relançada em espanhol no ano passado, foi publicada no Brasil em 2015 antes do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e da eleição do presidente estadunidense Donald Trump. “Tive uma crise de Cassandra”, conta a autora. “Alertei sobre essa horda autoritária que se acercava e me disseram que eu estava exagerando”, relembra. A 14ª edição do livro – atualizada – será lançada no próximo ano segundo Tiburi. Ela permanece hoje exilada na França depois de sofrer enxovalhamentos coordenados pelo Movimento Brasil Livre (MBL).

Na ocasião, Tiburi aclarou que o diálogo com um fascista não pode ser dócil, senão uma forma de resistência. “Um fascista é também um cínico. Ante evidências de seus atos antidemocráticos, ele é capaz de negar-los, de modo que ficamos sem reação”, avalia. No mesmo dia, o ex-presidente Michel Temer participou de evento em Madri e disse que não percebia qualquer ataque à democracia do Brasil.

Como a senhora vê medidas como o projeto de lei que prevê o excludente de ilicitude proposto por Bolsonaro? Ou a volta do AI-5, mencionada por Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes?

Por um lado existe o desespero dos neoliberalistas brasileiros que não aguentam as críticas. O neoliberalismo é o “capitalismo terrorista”. O terrorismo funciona baseado em ameaças; um massacre emocional. Com essa postura, [o ministro da Economia] Paulo Guedes tenta esconder sua própria incapacidade administrativa.

O título do livro é controverso, sugere algo complexo com a polarização política que se estende pelo mundo. O fascista, como a senhora aponta, não está aberto ao diálogo. Então como fazer com que escutem?

O título é irônico, provocativo. Não em um sentido sarcástico, mas filosófico. Uma questão colocada para fazer raciocinar. Por outro lado, a tese fundamental do livro é a de sustentar o diálogo como uma metodologia política. Os fascistas estão entre nós; muitas vezes são pessoas de nossas famílias. Se não somos capazes de conversar com um fascista, pelo menos não nos convertemos em um. Pois o fascismo retratado no livro é a ausência de diálogo, que implica na ausência da alteridade. De fato, não é possível ter uma conversa dialógica com um paranoico em estado avançado de sujeira mental. Mas acredito que necessitamos conversar entre nós [antifascistas] e com aqueles que ainda não alcançaram um nível de fascistização, quero dizer, de exacerbação dos preconceitos de forma radical. Para mim esta é uma questão, sustentar que o diálogo seja uma contraposição pela qual  devemos lutar ante uma sociedade que se “fascistiza”. É necessário colocar o diálogo como forma de resistência.

De acordo com seu livro, o diálogo não é uma salvação senão um experimento que vale a pena somar esforços se o projeto político for coletivo. A esquerda brasileira, da maneira que está organizada atualmente, poderia enfraquecer a narrativa fascista?

A nível mundial, é complexa a situação de todas as esquerdas. Se trata neste caso de reforçar o diálogo esquerdista contra o fascismo que cresce, na medida em que é muito fácil entrar na tendência dominante se você não for uma pessoa que já tenha tido um histórico de reflexão e valores democráticos com os quais realmente esteja comprometido. Sobretudo, se você não tem entendimento da situação. O livro também fala sobre desconhecimento, ignorância e idiotização planetária, no sentido da limitação cada vez mais radical da capacidade cognitiva.

A senhora comenta que a violência nasce nos meios de comunicação, especialmente na televisão, que incentiva os “fascistas em potencial”. Seria então um ciclo vicioso onde os monopólios com seus interesses econômicos e políticos controlam a mídia que gera fascistas?

A grande diferença entre o fascismo do século passado e o atual é o potencial de difusão promocionado pelos meios de comunicação de massas que, ainda que incipientes, foi muito poderoso. Com o Whatsapp, a campanha eleitoral de Bolsonaro à presidência teve como ferramenta a distribuição de fake news, com um esquema ilegal, que demarca uma fraude nas eleições de 2018. Ainda assim, ele segue ocupando o cargo de presidente do Brasil, pois existe um forte apoio dos empresários brasileiros, especialmente das empresas de comunicação, que com frequência entram em querelas contra ele, optaram por mantê-lo por temer um governo de esquerda. A Rede Globo, por exemplo, teve participação importante no golpe de Estado de Dilma Rousseff.

É possível dialogar com um “fascista em potencial”?

Este conceito que utilizo é de Theodor Adorno [filósofo alemão]. Ele diz que é um ser humano com disposição de se tornar um fascista, aquele carregado de preconceito, influenciável pela propaganda autoritária. Minha questão é o ser humano com escasso acesso à Educação, valores éticos e humanistas. As pessoas que não estão politizadas, essa massa manipulável é um fascista em potencial. Ainda que não podemos desresponsabilizar estas pessoas por seus atos, devemos responsabilizar muito mais os agentes da manipulação.

A senhora interpreta que o autoritarismo é citacionista e tem se manifestado pelas redes sociais. A internet, ainda que seja um terreno fértil para fake news, pode ser considerado uma ferramenta contra o discurso de ódio?

Por meio da “propaganda do amor”, sim. As pessoas são emocionais. O psicopoder pode funcionar para o bem. Obviamente como professora de filosofia defendo o diálogo, não a propaganda. Insisto na diferença entre discurso e diálogo. O primeiro é uma narrativa feita que determina o caminho das coisas. Por isso, proponho o diálogo, que requer o descobrimento do outro indivíduo.

Seria acertado se adequar a esta propaganda do amor? Não resultaria em um branqueamento do discurso progressista?

Não sustento nenhum acordo [com o conservadorismo]. Minha ideia de diálogo não é consenso, tampouco a aceitação do absurdo. A postura do diálogo não é uma postura dócil, senão o enfrentamento da verdade e uma abertura ao entendimento do outro. Diálogo não é ‘bater um papo’, mas um evento profundo. Platão dizia que a filosofia é o diálogo consigo mesmo. Quantas vezes nos sentimos dialogando enquanto lemos as obras dos pensadores que nos inspiram; muito mais do que com as pessoas com quem compartilhamos a casa?

Este texto foi originalmente publicado em lamarea.com em colaboração com a Fundación porCausa.