Marco Feliciano representa a cultura do estupro. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 12 de junho de 2016 às 11:58
Uma tragédia brasileira
Uma tragédia brasileira

Marco Feliciano, o deputado cristão tradicional brasileiro, o campeão nacional de colocações absurdas – se bem que o páreo é acirradíssimo com o Bolsonaro – acabou de bater o próprio recorde no quesito canalhice ao dizer que “não existe uma cultura do estupro, existem estupradores.”

Uma afirmação como esta parte de uma burrice tão descomunal que me recuso a acreditar que alguém seja realmente capaz de pensar assim. A cultura do estupro é tão óbvia e tão cristalina que nem mesmo a criatura mais alheia à realidade poderia negá-la.

Portanto, arrisco dizer que Feliciano não o fez por estupidez, mas certamente pela canalhice que lhe é característica.

A cultura do estupro está – desesperadoramente, aliás – por todos os lados.

Vivemos em um país em que trinta e três homens estupram uma garota de dezesseis anos, filmam e postam nas redes sociais, e homens e mulheres conseguem ainda assim culpabilizar a vítima: pesquisam o passado da garota (porque ninguém pesquisa o passado do estuprador?), investigam todos os detalhes dos fatos em busca de qualquer coisa que a condene, encontram justificativas para o injustificável.

Cenas de estupro são transmitidas na rede globo (tanto na ficção, nas tantas telenovelas apelativas, quanto nos reality shows, como em uma das edições do Big Brother Brasil, em que uma participante foi estuprada enquanto dormia) e recebidas pela família tradicional brasileira com uma naturalidade assustadora.

Mulheres são assediadas todos os dias, a “grande” mídia romantiza e relativiza os casos de violência sexual, brasileiros colam em seus carros adesivos da Presidenta eleita com as pernas abertas, a publicidade objetifica mulheres para vender cervejas.

Nas delegacias, vítimas de estupro ainda são indagadas sobre as roupas que usavam quando foram assediadas, ainda são perguntadas se tentaram evitar o estupro – como se isso não fosse óbvio – e a ideia de que vítimas podem, de alguma maneira, serem responsáveis pela violência que sofreram ainda impera.

Ensinamos as nossas meninas a temer. Dizemos que não devem andar sozinhas ou usar roupas chamativas, como se as mulheres realmente pudessem evitar estupros. Em paralelo, ensinamos aos nossos meninos que se uma mulher diz não, ela pode querer dizer sim ou talvez, ela certamente está apenas fazendo charme.

Em um país em que tudo isto acontece sob os nossos narizes, em que um cantor assedia uma repórter durante uma entrevista, em que um deputado diz que não estuprará determinada mulher porque ela não “merece”, em que tantos homens estupram e não fazem questão de esconder isso, não podemos dizer – não sem exercitarmos o ápice da canalhice ou da burrice humana – que inexiste um conjunto de crenças que respaldam a violência sexual.

Feliciano justifica a sua declaração absurda no fato de não haver uma religião que apoie o estupro. A bíblia responde por mim:

“Se houver moça virgem desposada e um homem a achar na cidade, e se deitar com ela, 24 trareis ambos à porta daquela cidade, e os apedrejareis até que morram: a moça, porquanto não gritou na cidade, e o homem, porquanto humilhou a mulher do seu próximo. Assim exterminarás o mal do meio de ti.” (Deuteronômio 22).

A moça estuprada deve ser morta porque não gritou na cidade, assim como foi moralmente morta a vítima do recente estupro coletivo porque, afinal, ela estava pedindo. A culpabilização da vítima é coisa antiga, mas os “cristãos” nunca deixaram de praticá-la. A cultura do estupro não apenas existe como é alimentada pela religião cristã e pelo conservadorismo patriarcal.

Os estupradores existem e estão por toda a parte porque há uma cultura que os legitima, há uma mídia que os protege e há um poder judiciário que os perdoa. Os estupradores existem porque a cultura do estupro existe, e porque existe quem a legitime, como, por exemplo, o próprio Feliciano.

Quando diz que cabe à família dar proteção às mulheres e ao Estado apenas observar “de longe” e intervir quando houver abusos, ele reproduz, mais uma vez, a cultura do estupro que ele próprio renega. Ele procura nos lançar à nossa própria sorte ao supor que o Estado não tem qualquer responsabilidade sobre o fato de uma mulher ser estuprada a cada onze minutos no país.

Quando diz que não há uma cultura do estupro porque nem sempre há conjunção carnal, ele também reproduz a cultura do estupro, porque ignora que estupro não está adstrito ao ato sexual, como se atos libidinosos não consentidos não fossem violência.

Ninguém melhor que Marco Feliciano para representar os três maiores inimigos das mulheres: o cristianismo, o conservadorismo e o patriarcado. Feliciano é a própria representação da cultura do estupro que renega.