Marcos Pontes, o astronauta que vendia “travesseiros da Nasa” e virou ministro. Por Miguel Enriquez

Atualizado em 25 de dezembro de 2018 às 15:12
“Travesseiro da Nasa” era fake news

POR MIGUEL ENRIQUEZ

Vindo da parte de um futuro presidente que, pelo andar da carruagem, deverá mandar o Brasil para o espaço com sua agenda ultraliberal na economia, conservadora nos costumes e troglodita nas áreas de segurança e direitos humanos, a indicação do primeiro (e único, graças ao bom Deus) astronauta brasileiro para comandar o ministério de Ciência e Tecnologia não deve causar nenhum espanto.

Afinal, um ministério que tem como titular o ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, um perfeito ignorante no campo do conhecimento tecnológico, poderia, em princípio, muito bem acolher alguém como o tenente coronel Márcio Pontes, formado em engenharia pelo respeitável Instituto Tecnológico da Aeronáutica, em cujo currículo constam cursos de pós graduação e aperfeiçoamento no exterior.

Ao ser questionado pela rádio Jovem Pan se sua qualificação de astronauta seria credencial suficiente para assumir o ministério, Pontes retrucou: “Não sou só isso. Sou administrador, engenheiro, bacharel em ciência aeronáutica, trabalho com a Nasa há 20 anos. Sei como conduzir isso de forma a ter resultados na riqueza do país ou na melhora da qualidade de vida.”

No entanto, mais do que sua eventual capacitação, o preocupante, no caso, é a trajetória de Marcos Pontes. Durante oito anos, entre 1998 e 2006, o militar, selecionado em concurso pela Agência Espacial Brasileira (AEB), recebeu treinamento no Johnson Space Center, em Houston, nos Estados Unidos, como representante do Brasil na Nasa.

Em 2005, foi escalado pela AEB para uma missão de 10 dias no espaço com o cosmonautas Jeffrey Williams (americano) e Pavel Vinogredov ( russo).

O trio decolou do Centro de Lançamento de Baikonur, no Cazaquistão, no dia 29 de março de 2006, a bordo da Soyuz TMA-8 sobre um foguete Soyuz com 200 toneladas de combustível rumo à  Estação Espacial Internacional (ISS),Com a duração de 10 dias, a Missão Centenário, como foi chamada, foi concluída no dia 8 de abril.

Datam daí as controvérsias em torno do comportamento do tenente coronel. Aparentemente, o sucesso com a missão e a perspectivas de faturar com a experiência subiram-lhe à cabeça.

Recebido como herói pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 20 de abril, Pontes anunciou, menos de um mês depois, em maio, sua passagem para a reserva remunerada da Aeronáutica, aos 43 anos de idade.

A decisão causou irritação no Ministério da Ciência e Tecnologia, justamente a pasta que Pontes ocupará a partir de janeiro de 2019, e na AEB, contrariados por não terem sido informados previamente.

“Minha surpresa foi ficar sabendo da passagem para a reserva pelo Diário Oficial”, disse o presidente da AEB, Sérgio Gaudenzi, ao jornal Folha de S.Paulo.

A estranheza mais do que se justificava. A AEB esperava que o astronauta fosse virar uma espécie de garoto-propaganda do programa espacial, treinando novos astronautas e funcionando também como uma espécie de “adido” da Agência junto à Nasa.

A Força Aérea Brasileira (FAB) tampouco escondeu sua frustração, pois apostava na popularidade do astronauta para estimular novas adesões às suas fileiras.

A bronca aumentou quando foi revelada a dinheirama gasta com Pontes nos oito anos  de sua vinculação ao Programa Espacial. Pelas contas  da AEB, o investimento feito pelo governo brasileiro na formação, treinamento e carreira do astronauta nos Estados Unidos, ficou em torno US$ 30 milhões, o equivalente a R$ 100 milhões em dinheiro de hoje – só a “passagem” de Pontes para o vôo da Soyuz rumo à Estação Espacial ficou em US$ 10 milhões, segundo Gaudenzi.

No entanto, Gaudenzi, mesmo desapontado, viu um ponto positivo na experiência: a visibilidade internacional do programa espacial brasileiro, o que abriria caminho para parcerias com a Rússia, Ucrânia, Estados Unidos e União Europeia.

A reação no Congresso foi bem menos condescendente na avaliação do comportamento de Pontes. “Foi um dinheiro e tanto. E agora, quando ele poderia partilhar esse aprendizado com colegas, pede o afastamento”, observou o deputado Walter Pinheiro (PT-BA), integrante da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara.

Seu colega Alberto Goldman (PSDB-SP), outro membro  da Comissão, não escondeu sua indignação. “Muitos imaginaram que o astronauta permaneceria na carreira por patriotismo. Mas, no caso, o que mais importou foram os interesses pessoais”, afirmou  Goldman, que pedia a criação de regras para garantir a permanência de futuros astronautas no serviço público.

Livre, leve e solto para alçar novos voos, Marcos Pontes não perdeu tempo para aproveitar o prestígio angariado em suas peripécias espaciais para reforçar seu pé de meia ( ele se justifica, por ter saído com apenas um terço dos vencimentos da ativa ao passar para a reserva), investindo em áreas como educação, coaching, palestras, consultoria técnica, turismo, gerenciamento de projetos, entre outras.

Bolsonaro e Pontes

Uma de suas primeiras providências foi criar uma empresa, a Marcos Pontes Engenharia e Eventos. Por meio dela, o homem que custou R$ 100 milhões em sua encarnação de astronauta à sociedade brasileira, passou a ministrar palestras de autoajuda para empresas, lançou três livros, além de criar uma fundação destinada a educação para crianças.

Embora tenha sido nomeado mais tarde embaixador da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial, desde que largou a farda, Pontes se notabilizou mesmo foi em seus negócios privados.

Um deles, foi a atividade de guia turístico para os visitantes do Kennedy Space Center (KSC), em Cabo Canaveral, na Flórida, o mítico centro de lançamento de foguetes da Nasa na corrida espacial disputada com a extinta União Soviética.

No KSC, localizado a apenas 40 minutos de Orlando, Pontes era um dos cicerones do  Fly with an Astronaut, programa em que um astronauta guia os visitantes por alguns dos lugares mais excitantes do lugar. Trata-se de um passeio destinado a famílias de turistas brasileiros em que, na companhia de Pontes, mediante a módica quantia de US$ 199 para os adultos e US$ 174 para as crianças, era possível conhecer o ônibus espacial Atlantis verdadeiro, lançado em 1985, torres de lançamento de foguetes, além de almoçar em sua companhia, com direito, ainda,  a fotografias autografadas com o astronauta aposentado.

Uma outra vertente dessa modalidade de exploração turística é feita ela Agência Marcos Pontes, que oferece pacotes para os interessados em conhecer a Nasa de perto, com uma equipe de guias especializados.

Como explica o site da agência, trata-se de  “uma empresa especializada em pacotes turísticos exclusivos, desenvolvidos para pessoas muito especiais: as que vivem intensamente, explorando novas possibilidades e aventuras, realizando o sonho de conhecer lugares extraordinários e experimentando sensações que apenas alguns seres humanos vivenciaram, como voar em um jato de caça, mergulhar a bordo de um submarino ao encontro do Titanic, flutuar na gravidade zero e ver a Terra do espaço.

Empresário de múltiplos interesses, ele também alugou sua popularidade à publicidade. Há alguns anos, se transformou no garoto propaganda  de um produto conhecido como o travesseiro da Nasa, apresentado como “o genuíno travesseiro do astronauta brasileiro Marcos Pontes”,  fabricado pela empresa catarinense Marcbrayn, de Joinville.

Na verdade, como observou a revista Superinteressante, o travesseiro é tão “da Nasa” quanto um vestibulando reprovado na Fuvest é “da USP”. Sua espuma viscoelástica foi desenvolvida para equipar foguetes, mas não embarcou neles. Tudo bem: ele é oficialmente um Nasa spin-off, termo para avanços que chegam ao mercado graças a uma forcinha da agência espacial americana.

Segundo a revista, tudo começou em 1966, quando a Nasa encomendou um material de revestimento para as naves que absorvesse choques. Surgiu aí a espuma viscoelástica, que se adaptava ao formato do corpo e voltava ao volume original quando a pressão era removida. Mas havia um detalhe: o cheiro foi considerado muito forte e, por isso, a espuma foi descartada pela agência americana. Só mais tarde, nos anos 1980, quando a tecnologia ficou mais barata e menos cheirosa, a tal viscoelástica passou a se aproveitada na produção de travesseiros e colchões.

Em resumo: nunca existiu o tal travesseiro da Nasa.

A veia empreendedora de Pontes, que teria começado a se manifestar antes mesmo de sua passagem para a reserva, não passou desapercebida pelas autoridades. Ele foi alvo, por exemplo, de uma investigação do Ministério Público Militar, sob a suspeita de ter faturado com a venda de produtos e palestras enquanto era oficial da ativa da Aeronáutica. Por uma dessas coincidências do destino, o recurso do MPM para seguir com a investigação caducou em agosto deste ano no STF.

Antes de aceitar o convite de Bolsonaro para assumir o ministério de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes tentou uma incursão pela política. Em 2014, candidatou-se a deputado federal por São Paulo pela legenda do Partido Socialista Brasileiro (PSB), que segundo o governador eleito de São Paulo, João Dória Júnior, não passa de linha auxiliar do Partido dos Trabalhadores. A tentativa foi mal-sucedida. Com 43 mil votos, Pontes não conseguiu se eleger.

Nas eleições deste ano, porém, Pontes se deu bem. Numa espécie de salto tríplice carpado, farejando com precisão os ventos que sopravam em favor de Bolsonaro, logrou candidatar-se como segundo suplente ao Senado na chapa do PSL, encabeçada pelo Major Olímpio, que ficou com uma das duas vagas paulistas.

A adesão ao bolsonarismo foi retribuída com o convite para assumir o ministério de Ciência e Tecnologia. Cristão novo, Pontes não hesitou em adotar o linguajar agressivo do capitão-presidente. Na quarta feira passada, tão logo soube da oficialização de sua indicação, o astronauta aposentado, que participava de um evento com estudantes em Manaus, mandou brasa, como se dizia antigamente.

Sem que ninguém lhe cobrasse, afirmou que combaterá “inimigos internos e externos com o mesmo sacrifício de vida”, rememorando o juramento prestado ao formar-se piloto de caça na Academia da Força Aérea, na década de 1980. Juramento esse, diga-se, que permaneceu adormecido desde os tempos em que abandonou precocemente a carreira militar em busca de bons negócios na iniciativa privada. “Vou continuar a fazer com o mesmo nível de dedicação.”

Extraterrestres, doravante todo cuidado é pouco.

Pontes com Lula