Marielle Franco e a volta ao trágico-normal. Por Aldo Fornazieri

Atualizado em 19 de março de 2018 às 9:26

Publicado no jornal GGN

POR ALDO FORNAZIERI, professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP)

Marielle Franco. Foto: Thais Alvarenga/Divulgação/Facebook

A brutal execução da vereadora Marielle  Franco provocou uma onda de choque emocional que atingiu praticamente todo o Brasil. O choque despertou forças anímicas de indignação, revolta, tristeza, compaixão, solidariedade e dor nos mais diversos setores sociais. Fora algumas manifestações hipócritas é de se crer na sinceridade dessas diversas manifestações sentimentais com o ocorrido.

Com o início da nova semana, contudo, a onda de choque perde poder de propagação e as forças anímicas se enfraquecem e tudo voltará ao trágico-normal da sociedade brasileira. Claro, Marielle será uma heroína no PSol e inspirará dezenas de ativistas em torno das causas das mulheres e negras, dos jovens pobres e negros das periferias, dos direitos humanos e assim por diante. Mas o trágico-normal será mais forte com o passar dos dias e a dor silenciosa e persistente ficará apenas na alma dos familiares de Marielle e de seus amigos e amigas mais próximos.

O que é o trágico-normal? É a tragédia naturalizada no Brasil, integrada ao nosso cotidiano de violência, que entra em nossas mentes pela TV, pela Internet, pelo noticiário. A aceitamos como algo normal em nossas vidas, como algo constitutivo da paisagem social, cultural, política e mental do nosso dia-a-dia. O trágico-normal é a morte do menino Benjamin de apenas um ano, atingido na Favela do Alemão. O trágico-normal são as mulheres grávidas baleadas e os ainda não nascidos atingidos por balas perdidas no ventre das mães.

O trágico-normal são as milhares de mulheres espancadas no silêncio do lar ou nas ruas e, muitas delas, assassinadas pelos seus companheiros ou ex-namorados. O trágico-normal são os jovens pobres e negros assassinados todos os dias, muitas vezes pela própria polícia que deveria protegê-los. São mortos simplesmente por serem jovens pobres e negros.

O trágico-normal são os mortos e torturados da ditadura, é a  execução de Chico Mendes é o assassinato de líderes indígenas, sem terra e ativistas ambientais e dos direitos humanos. Nos últimos 5 anos foram quase duzentas assassinatos documentados de líderes e ativistas. Só nos lembramos deles nos momentos de ondas de choque emocional. É até por isso que não devemos alimentar muito a ilusão de que Marielle se tornará uma heroína nacional estampada em estandartes, cartazes e bandeiras seguidos por milhões de negras e negros, de jovens, trabalhadores, estudantes e intelectuais a desfraldarem as suas insígnias na praça dos Três Poderes, no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal. Seria a suprema e merecida homenagem a essa lutadora corajosa. Mas não somos capazes de glorificá-la a este ponto. Seria também a suprema homenagem aos outros bravos lutadores que tombaram pelas balas covardes dos sempre atocaiados contra a justiça e a igualdade.

Diga-se, ainda, que o trágico-normal são os 174 assassinatos diários, os quase 62 mil assassinatos anuais, fora as outras formas de violência. Em oito anos de guerra na Síria, com superpotências envolvidas e com uma brutalidade inominável, morreram de 511 mil pessoas – cerca de 62,8 mil por ano. No silêncio do nosso trágico-normal matamos, praticamente, tanto quanto.

Os assassinos de Marielle, tenham sido eles milicianos, policiais ou traficantes, foram apenas executores das ordens emanadas de um sistema criminoso e corrupto. Note-se que há o assassinato seletivo de líderes e ativistas em todo o Brasil: são assassinados aqueles ativistas que estão lá na ponta, aqueles que têm a coragem de enfrentar e denunciar os males e a brutalidade do sistema lá em baixo, onde nós, intelectuais, parlamentares, líderes partidários, estudantes, advogados, não chegamos.

Marielle não foi morta por ser vereadora do PSol, mas porque era vereadora do PSol que enfrentava o sistema onde ele manifesta a sua face mais criminosa: lá onde estão os pobres, onde estão as periferias. Pode-se ser radical nos parlamentos, nas universidades, mas não nas periferias. Não junto aos pobres.

Milicianos e organizações criminosas são o Estado operando na ilegalidade, são expressão desse Estado e desse sistema criminosos. Não nos iludamos quanto a isso. Milicianos e crime organizado são males que precisam ser combatidos. Mas será como enxugar gelo se forem combatidos apenas em si mesmos, sem mudar esse sistema.

Em todos os lugares, o Estado ilegal e violento só é possível enquanto operador do Estado legal quando este se tornou presa de esquemas e quadrilhas de corruptos e criminosos. Quadrilhas governamentais corruptas e criminosas são cúmplices e avalistas do Estado ilegal delinquencial e violento. O Estado legal é prisioneiro de grupos particularistas, que o saqueiam sistematicamente para auferir renda e riqueza, transferindo recursos dos pobres para os ricos. Foi este sistema que matou Marielle e tantos outros ativistas, escolhidos para morrer de forma seletiva.

Os líderes progressistas precisam assumir uma responsabilidade maior

A forma brutal com que Marielle foi ceifada e os emblemas de suas lutas conferiram-lhe grande reputação e poder simbólico. Para combater estas significações, desencadeou-se uma guerra pérfida na Internet, eivada de mentiras monstruosas, contra a sua reputação, contra a sua dignidade e contra a sua memória. Essa guerra é assimilada por pessoas das classes médias baixas e pessoas pobres. Eles têm em seus celulares vídeos, que foram produzidos às dezenas pelos centros de operação dessa guerra, para mostrar que Marielle “defendia bandidos”, simplesmente por combater a morte de jovens negros e pobres. Essas pessoas, enganadas em sua boa fé, amedrontadas com a falta de segurança e de perspectivas, simpatizam com Bolsonaro. Trata-se de um enorme problema para as esquerdas porque as esquerdas ficam indignadas contra essas canalhices, o que é justo, mas as esquerdas não sabem fazer esta guerra.

As esquerdas precisam acordar de seu sono entorpecedor e perceber que estamos imersos numa guerra de vastas proporções, travada em várias frentes e de forma sofisticada, envolvendo valores e interesses. Aqueles que avaliam que a batalha está vencida porque o governo está desmoralizado e porque Lula lidera as pesquisas e, se não puder ser candidato elegerá um ungido, enganam-se. Assim como agem para impedir e silenciar Lula, agirão para desmoralizar qualquer substituto seu. O fato é que as esquerdas não estão preparadas e nem aparelhadas para enfrentar a guerra em curso, cuja última instância é o assassinato.

Passada a onda de choque, a tendência natural das esquerdas é a de se voltarem para embate eleitoral. Uns defenderão Lula, outros o Boulos, terceiros a Manuela e quartos o Ciro Gomes. Esta é a realidade posta. Mas, neste momento, é preciso um freio de arrumação em tudo isso. A realidade cobra uma responsabilidade maior dos líderes. Esses candidatos deveriam sentar-se numa mesma mesa, não para buscar uma unidade que não virá, mas para definir um manifesto à nação, ao povo brasileiro, traçando uma linha divisória, um risco no chão, para dizer que não admitirão que ele seja cruzado pelas forças corruptas e criminosas que mandam no país e que têm seus braços operacionais no Estado ilegal e violento. Esse manifesto deveria ser uma diretriz de luta de todos os partidos e movimentos progressistas.

Estes lideres, de forma conjunta, precisam dizer que lutarão por uma democracia que não existe para a imensa maioria dos brasileiros. Precisam dizer que não admitem mais o desmantelamento de direitos. Precisam dizer que os brasileiros não suportam mais a desigualdade, a injustiça e a violência contra o povo e os pobres. Precisam dizer que não aceitarão mais a violação da ordem constitucional pelo próprio Judiciário. Se fizerem isto, estarão prestando a homenagem que Marielle merece.