Marilena Chauí deu entrevista à Folha, na qual falou sobre os mais diversos temas de política e atualidades:
Sobre Trump
A visão que eu tenho do Trump é de que ele está desinstitucionalizando os Estados Unidos. Ele faz intervenções pontuais em lugares de conflito: Gaza, Ucrânia, Venezuela… E a resposta que deu a perguntas do motivo disso foi: “Porque eu posso”.
Então, a imagem que eu tenho é a do fim do império americano. Trump se apresenta como o portador do antigo imperialismo, mas esse imperialismo está quebrado por dentro.
Do mesmo modo que, no fim do Império Romano, você teve figuras como Calígula e Caracala, nos EUA você tem Trump, ou seja, um desmando no nível da sua própria personalidade, do tipo eu quero, eu posso, eu faço. E isso desinstitui um país e põe em risco todas as relações planetárias estabelecidas.
Por enquanto, ele tem sustentação ideológica por causa do crescimento da extrema direita no mundo. Mas não sei até quando vai esse suporte político.
Sobre a classe média
Ah, sim, [odeio] com todas as minhas forças. Eu odeio a classe média até o fim dos meus dias.
Por que é que eu odeio a classe média? A sociedade capitalista tem duas classes fundamentais: a classe trabalhadora, que produz a mais-valia, e a burguesia. O trabalho da burguesia é explorar o trabalhador, porque uma parte do trabalho dele não é paga e vira capital.
O lugar, o papel, o significado, a relação dessas duas classes são claríssimos. Entre elas, tem uma terceira, que não tem lugar econômico porque não está nem na classe trabalhadora nem na classe burguesa. E a função da classe média é ideológica: espalhar as ideias da burguesia, da classe dominante.
Como a classe média não sabe muito bem onde está, ela fica insegura. Ela tem um sonho e um pesadelo. O sonho é se tornar burguesa. Pensa que se tiver um apartamento com dez suítes, churrasqueira na varanda, não sei o que mais, está já próxima disso. Mas ela não está.
Enquanto não receber a mais-valia, ela não entra na burguesia. Ela pode ficar rica, mas burguesa ela não é. E por isso ela tem um pesadelo, que é cair na classe dominada, na classe trabalhadora.
Então, a classe média funciona oprimindo os dominados e festejando e bajulando os dominantes. Por isso ela é odiosa. Ela é o cimento ideológico que garante que essa sociedade fique como está. É isso que acho odioso nela: não perceber que essa sociedade como está não pode ser.
Sobre a tecnologia
Uso o celular como telefone e para fazer Pix. Só. Essa coisa chamada WhatsApp, eu nem sei o que é. E nenhuma rede social. Nada, nada. Quando faço essas conferências online, eu peço para as pessoas: “Mande o tal do link 20 minutos antes e tenha uma santa paciência lá do seu lado que eu vou acertar”.
E aí, você não imagina, tomo um calmante, porque sei que vou errar no link. Mas não erro. Eu sempre acerto.
O mesmo acontece com relação ao computador. Eu sempre acho que vou apertar um botão errado e vou perder tudo. Meu filho disse: “Não, mãe, você não perde porque está na nuvem”. Eu falei: “Bom, então agora estou destruída, porque, se chover, acaba tudo, né?”. [risos]
Ao mesmo tempo, tenho problemas filosóficos com o mundo digital e especialmente com esse objeto [faz gesto com a palma da mão como se fosse a tela de um celular]. Eu venho de uma formação pela fenomenologia e, em particular, pelo [filósofo francês Maurice] Merleau-Ponty, que é o universo da percepção. E portanto é o mundo da relação com o espaço vivido, com o tempo vivido, com os símbolos e com a linguagem.
A redução que o digital fez foi tornar o espaço isso aqui [o celular], o tempo isso aqui [o celular]. O mundo da percepção está destruído.
Sobre Boaventura de Sousa Santos e assédio sexual
Em 1972, fui dar aula em Stanford, nos EUA, e, num dado instante, eu estava saindo da sala da diretoria com duas professoras. Aí um professor abriu a porta para nós. A professora fez um escândalo. Disse que aquilo era assédio sexual, que ele estava propondo o coito…
Eu caí das minhas tamancas. Então, eu me pergunto: o que é que se determinou como comportamento inapropriado? Para aquele grupo de Stanford, um homem abrir a porta para uma mulher era assédio sexual. Então, acho que as fronteiras da vida cotidiana e dos hábitos milenares precisam ser discutidos. Não há uma discussão a esse respeito. O que há é uma acusação.
E a minha dificuldade em lidar com as acusações é esta: você não tem um esclarecimento do proibido e do permitido, do aceitável e do inaceitável. A punição vem antes que você saiba qual é o crime. Então isso me deixa muito aflita.
Tive uma relação sempre de amizade profunda com Boaventura em muitas ocasiões e jamais poderia ter qualquer dúvida a respeito do comportamento dele comigo. Eu vi dois amigos meus serem destruídos e um colega meu de Córdoba, na Argentina, quase se matar porque alunas fizeram acusações contra eles.
Eu sempre acho que é preciso proteger os movimentos, mas é preciso ter cautela no momento da acusação. Você pode destruir uma pessoa que talvez tenha tido um gesto que não podia ter tido. Mas a acusação é de um grau de violência que eu ainda não concordo. É o tal do cancelamento. Eu acho que é um assassinato.
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