
Durante sua presidência, Bolsonaro fez da Venezuela um símbolo do fracasso. Rompeu relações diplomáticas com o governo local, proibiu a entrada de seus representantes no Brasil e afirmava que o povo venezuelano “comia cachorro na rua”.
Usava o país vizinho como exemplo do que, segundo ele, não poderia acontecer no Brasil.
Agora, em uma reviravolta irônica, recorre justamente a um tratado assinado em Caracas para tentar escapar da prisão.
Documentos divulgados pela Polícia Federal mostram que o ex-presidente utilizou a Convenção sobre Asilo Diplomático, firmada na capital venezuelana em 1954, para justificar um pedido de asilo à Argentina. O movimento surge em meio às investigações sobre sua atuação para reverter o resultado das eleições de 2022, apontada por autoridades como tentativa de golpe.

A escolha do tratado chama atenção não apenas pelo simbolismo da cidade-sede. Ao longo de seu governo, Bolsonaro desprezou a tradição de cooperação regional da diplomacia brasileira e hostilizou diversos países latino-americanos signatários da mesma Convenção.
Rejeitou parcerias com governos progressistas eleitos democraticamente, atacou lideranças da região e abandonou fóruns de diálogo como a Unasul e a Celac.
A relação com a Argentina, por exemplo, se deteriorou após a eleição de Alberto Fernández, que sequer foi cumprimentado pelo capitão. Bolsonaro afirmou que os argentinos haviam “votado mal” e rompeu com a tradição de diálogo entre os dois maiores sócios do Mercosul.
O mesmo padrão se repetiu com o México de López Obrador, o Chile de Gabriel Boric e a Colômbia de Gustavo Petro — todos tratados com ironia, críticas ou silêncio.
Na Bolívia, o ex-mandatário foi acusado de apoiar o golpe que derrubou Evo Morales e não reconheceu abertamente a vitória de Luis Arce nas urnas.

Internamente, o ex-presidente também demonstrou desinteresse pela integração regional. Atacou o Mercosul, defendeu sua flexibilização e esvaziamento, e aproximou o Brasil de uma agenda externa ideológica, alinhada aos Estados Unidos e a Israel, em detrimento de parcerias históricas no continente.
Agora, cercado por investigações e com aliados condenados pelos ataques de 8 de janeiro, se volta justamente à América Latina como possível abrigo. Um continente que ele tentou isolar e cuja institucionalidade regional foi, em grande parte, alvo de desprezo em seu governo.
A ironia é emblemática: o líder que mais se opôs ao regime venezuelano agora se ampara em um instrumento jurídico nascido em solo bolivariano.