A perda de uma casa não é apenas a perda de um abrigo físico, mas também de um espaço carregado de memórias pessoais e de um sentimento de pertencimento e proteção. Os temporais no Rio Grande do Sul, que já deixaram mais de 600 mil desabrigados, dão uma dimensão dolorosa para a ideia trazida pelo filósofo francês Gaston Bachelard na obra “A Poética do Espaço” (1958).
“Sem a casa, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida”, escreve Bachelard. Na crise dos desabrigados no RS, as recentes catástrofes trouxeram uma realidade brutal em que a profunda conexão entre espaço e alma foi rompida abruptamente.
Nossas memórias e sonhos são moldados pelo lugar que habitamos, segundo o filósofo. Ele afirma que “a casa é o nosso canto do mundo, […] o nosso primeiro universo, um verdadeiro cosmos em todo o sentido primitivo da palavra”.
Nesse “primeiro universo”, cada canto e objeto evoca uma profunda intimidade emocional. O espaço extrapola sua funcionalidade física, agindo como um refúgio para devaneios e um reservatório de lembranças da infância e de outros períodos da vida.
Na sexta-feira (10), viralizou nas redes sociais o vídeo de uma família de Novo Hamburgo (RS) tentando salvar retratos que ficaram molhados após perder sua casa. “Não sobrou nada, nem para a nossa casa vamos conseguir voltar porque as paredes apodreceram. Mas as fotos são parte da gente, são registros da nossa história”, disse Milena Paungartner, de 23 anos.
Para Bachelard, a casa é “um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade”. Consequentemente, “todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa”.
A ação de secar fotografias, memórias físicas de momentos compartilhados, enfatiza o papel desse lugar como um universo de lembranças pessoais e coletivas. Essas fotos representam fragmentos de um lar perdido, reiterando o pensamento de Bachelard sobre a casa ser muito mais do que suas paredes: é um espaço de emoções, memórias e sonhos.
O desalojamento pode ser visto como uma perda da “essência de lar”. Deixa um vazio que vai além do material, afetando a capacidade de sonhar e encontrar refúgio no próprio espaço pessoal. Essa ruptura dissolve a arquitetura emocional e mnemônica que forma a base da identidade.
A necessidade de reconstrução trascende as estruturas físicas: é também um restauro do espaço imaginativo que cada casa representa para seu morador. Essa reconstrução não consiste apenas em erguer novas casas, mas em transformar espaços vazios de volta em lares.