Merval Pereira e um advogado produzem fake news sobre presunção de inocência. Por Lenio Streck

Atualizado em 26 de março de 2018 às 17:50

Texto publicado no CONJUR.

Por Lenio Luiz Streck

Para adoçar o gosto de quem costuma ler apenas o título ou o início de textos, aviso: o texto é sobre um advogado (José Paulo Cavalcanti Filho) e um jornalista (Merval Pereira), que publicaram fake news. Para usar a palavra da moda: horrível.

Ao trabalho. Sem bílis e sem mau sentimento. Escrevi, na semana passada, coluna contestando uma “pesquisa Colgate”, pela qual, dos 194 países do mundo, 193 não têm presunção da inocência como o Brasil. A “tese” foi espalhada pelo jornalista Merval Pereira, que a copiou do professor e advogado José Paulo Cavalcanti Filho[1] (ler aqui).

Outros jornais, jornalistas e jornaleiros repetiram a comédia. Horrível [sic]. Imaginemos que o professor ou o jornalista fossem médicos, e espalhassem uma notícia tipo “68 países aboliram a vacina contra o sarampo — o substituo é um chá revolucionário descoberto no Butão”. Provavelmente, a Associação dos Médicos faria um comunicado e uma advertência aos dois esculápios, censurando-os face à falsidade da notícia.

Em face da repercussão da “pesquisa” (nas rádios os locutores diziam, Brasil afora: “só no Brasil! Jurista e jornalista desmascaram a farsa da presunção” e coisas desse tipo), a OHB (Ordem dos Hermeneutas do Brasil) decidiu fazer uma nota-carta dirigida a Merval e Cavalcanti. Eis:

Aos senhores José Paulo Cavalcanti Filho e Merval Pereira.

Tendo em vista a pesquisa divulgada em diversos veículos de comunicação, afirmando que, “na ONU, 193 dos 194 países têm prisão em 1ª ou 2ª instância”, vimos repor a verdade acerca do tema. E também informar, aos que leram e acreditaram, que a tal pesquisa não existe. É fake news.[2] É fake research. O jurista e o jornalista fizeram uma coisa fake. Isso é horrível.

Como informa o professor Emilio Peluso Meyer — Prêmio Capes de Tese em 2013 —, ‘[a] presunção de inocência aparece em inúmeras normas de Direito Internacional e, pode-se dizer, integraria o acervo hoje produzido pelo constitucionalismo em geral. Assim, o artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão a prevê; o artigo 14.2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 menciona o direito; o artigo 6.2 da Convenção Europeia de Direitos Humanos traz a norma; o artigo 8º, n. 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos, também disciplina e garante a presunção de inocência. Em todos esses dispositivos, as normas remetem à disciplina legal para pormenorizar tal direito, por vezes utilizando a expressão ‘according to law’. Em termos comparados, inúmeras Constituições estabelecem tal direito fundamental e, de seu turno, remetem para a regulamentação legal.

Algumas Constituições associam presunção de inocência e coisa julgada. A Constituição da Albânia de 1998 exige uma decisão final para colocar de lado a presunção de inocência (artigo 30); a Constituição de Angola de 2010 fixa a presunção de inocência até que a decisão final seja alcançada pela res judicata (artigo 67, n. 2); a Constituição da Bulgária de 1991 (artigo 31, n. 3), também exige decisão final; a Constituição da Croácia de 1991, no artigo 28, menciona o julgamento final como requisito para afastar a presunção de inocência; também assim dispõe o artigo 69, n. 3, da Constituição da República Dominicana de 2010; igualmente, assim o fazem a Constituição do Equador de 2008 (artigo 76, n. 2); da Itália de 1947 (artigo 27); da Polônia de 1997 (artigo 42, n. 3); de Portugal de 1976 (artigo 32, n. 2); da Romênia de 1991 (artigo 23, n. 11); e, é claro, assim o dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (artigo 5º, inc. LVII), tratando-o como princípio da não-culpabilidade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”

E segue Peluso Meyer: ‘[n]o sistema jurídico estadunidense, a cláusula derivaria do sistema instituído pela Constituição de 1787. Em Coffin v. United States, 156 U.S. 432 (1895), a Suprema Corte estadunidense havia decidido e dado conformação à presunção de inocência (presumption of innocence) no sistema jurídico daquele país. Decorre da decisão o famoso adágio de que o condenado só pode ser assim reconhecido ‘beyond reasonable doubt’: este seria um efeito da prova produzida no processo, funcionando a presunção de inocência como obstáculo a ser superado e mesmo como meio de prova.’

‘É claro que há inúmeras questões contextuais a se analisar’ – continua o culto jurista Peluso Meyer – ‘e que demandam a verificação da prática dos tribunais e da legislação de inúmeros países. Entretanto, tais dados parecem questionar o que fora defendido no voto da ministra Ellen Gracie [e agora por Cavalcanti Filho e M. Pereira] no julgamento do Habeas Corpus (HC) 85.866, no sentido de que ‘Em nenhum país do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando o referendo da Corte Suprema’ (p. 227). Parece haver um grau maior de complexidade na questão não captado pelo referido voto’. Veja-se que, ao que parece, Cavalcanti e Merval pegaram a tal ‘pesquisa’ desse voto da ministra. E, tanto o jurista como o jornalista, nenhum verificou a informação. Compraram gato por lebre. E o venderam.

Assim, saibam todos quanto este público comunicado virem, no ano da graça do nosso senhor Jesus Cristo de 26 de março de 2018, que não é verdade, mas não é verdade mesmo, que, dos 194 paises, só o Brasil cultua a presunção da inocência com fecho no trânsito em julgado”.

OHB (lê-se OAGAB — com acento no B) — Ordem dos Hermeneutas do Brasil, por sua presidência.

Espero que a matéria esteja devidamente esclarecida. Lamentavelmente, ambos, jornalista e jurista, caíram em uma armadilha. Como diz o psicanalista Mario Corso:

Boa parte do tempo, repetimos erros tolos. Depois que botamos algo na cabeça, aquilo organiza os dados externos para justificar a tese preliminar. Se a realidade não corroborar nossas teses, pior para a realidade.

Bom, depois de tudo isso, espero que pelo menos Merval faça uma retratação. Não se pode transformar fatos em relatos. Em pós-verdades. Claro que o Dr. José Paulo Cavalcanti Jr, sendo o professor e advogado respeitável que é, também poderia fazer o mesmo.

Post scriptum: Ainda quanto à questão de fato e questão de direito
A tese de que o segundo grau esgota a matéria fática é, efetivamente, insustentável. Querem ver? O próprio Supremo Tribunal Federal, no ano de 2016, disse o contrário.[3] Surpresa? Pois vejam o RE 306.188/PR: “Revertendo o relator do recurso extraordinário o quadro decisório formalizado na origem, há de julgar a causa por inteiro, alcançadas as despesas processuais”. Bingo.

Portanto, peço que leiam a coluna da semana passada (Segundo grau esgota questão de fato? Será que no Butão é assim?) e, a ela, agreguem a carta da OAGAB, o artigo integral do jurista Peluzo Meyer e mais o julgado do STF sobre a impossibilidade de cisão entre questão de fato e questão de direito.