“Meu avô era contra tudo o que Moro representa e morreu defendendo Lula livre”, diz ao DCM neta de herói da FEB

Atualizado em 12 de janeiro de 2020 às 22:53
O coronel Alexandrino, herói da FEB, em foto postada por sua neta

O fim de semana não foi bom para Sergio Moro.

Após lamentar no Twitter a morte do coronel Antônio Alexandrino Correia Lima, ex-combatente da FEB, a neta do militar lhe deu uma resposta inesquecível.

Renata Gomes postou uma foto do avô segurando um cartaz com os dizeres: “Tenho 100 anos, combati na Itália contra o fascismo. #Haddad 13”.

“Meu avô, seu JUIZECO FASCISTA, abominava você!!!”, emendou.

A história viralizou — algo que Renata, doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo, não esperava.

“Nunca imaginei que isto ganharia estas proporções, não era o que eu desejava”, contou ela nesta entrevista ao DCM.

“Mas agi da única maneira que pude diante do gesto de Moro e creio que fiz jus à memória do Cel. Alexandrino”.

Diário do Centro do Mundo: O que levou você a responder para o ministro Sergio Moro?

Renata Gomes: A primeira coisa que gostaria de deixar bem clara é que as respostas a Moro são responsabilidade minha, não de meu avô ou de minha família.

Causou-me imensa revolta ver o ministro tentando se aproveitar da memória de meu avô recém-falecido, que,  junto a tantos outros, arriscou a vida para libertar cidades como Montese, na Itália, do jugo nazifascista, quando ele, Moro, participa consciente e ativamente da construção de um estado neofascista no Brasil.

Também me revoltou a hipocrisia de quem pede “mais filmes e livros” sobre a FEB, fazendo parte de um governo que está avidamente destroçando toda nossa produção audiovisual e de pesquisa.

Não admiti que ele se valesse da memória de meu avô para emplacar sua hipocrisia, mas tampouco queria que as coisas ganhassem tamanha repercussão.

Seu avô lutou onde?

Meu avô lutou com a Força Expedicionária Brasileira na Itália. Nunca conversou em detalhes conosco sobre a guerra e seu silêncio nos permitiu compreender o quão traumáticos foram os horrores que viu e viveu.

Alguns atos heroicos em sua passagem pela Itália eu só vim a descobrir com mais detalhes há poucos dias, por relatos de outros febianos, aos quais nunca tinha tido acesso. Como inúmeros outros da FEB, meu avô efetivamente quase morreu para vencer o nazifascismo.

Por tudo isso, vovô sempre foi um pacifista convicto e expressou essa convicção em verso e prosa ao longo de toda a sua vida, chegando a adornar a casa com seus versos em prol da paz, da fraternidade, do amor e da democracia.

Por que a citação do nome de seu avô por Sergio Moro a incomodou?

Porque meu avô lutou sua vida inteira, até o fim, contra tudo o que Moro representa hoje, como um juiz que usurpou e ainda usurpa o estado democrático de direito, transformando a luta necessária e urgente contra a corrupção numa cruzada política seletiva, que visava exclusivamente a destruição de Lula e do PT, para favorecer um lado, o qual, como se viu, lhe retribuiu com vantagens.

Meu avô sempre foi um legalista, sempre defendeu a Constituição, inclusive durante a ditadura, por isso, repudiava quais afrontas à democracia. Morreu lúcido e convicto de seus valores.

O que seu avô diria a Moro, se pudesse?

Acho importantíssimo enfatizar que meu avô, homem de outra geração, nunca usou redes sociais e, como um senhor bastante discreto, não se manifestaria publicamente sobre quaisquer assuntos. Por isso, repito, as respostas são minhas, a partir de tudo o que ele me ensinou.

Desta forma, posso apenas repetir que meu avô repudiava o que Moro e seus aliados fizeram e fazem contra a democracia, ele morreu defendendo Lula livre.

Postei novamente sua foto como homenagem, por ocasião de sua morte, porque ela representa muito bem algumas de suas maiores qualidades, sua serenidade e persistência em lutar a boa luta, sua esperança na mudança, seu otimismo e, claro, sua crença inabalável na democracia.

Postei para tentar aplacar a saudade gigantesca que sinto dele. Vovô nunca deixou de exercer sua cidadania e fez questão de ir votar em Haddad, numa tentativa de barrar o que sabia ser um governo que atentaria contra a democracia.

O cartaz da foto foi escrito, se não me engano, por minha tia, a foto, tirada por meu tio, tudo com a anuência de meu avô. Quando expliquei pra ele a repercussão, na época, ele achou curioso e um tanto surpreendente que seu gesto tenha sido tão aplaudido.

Você diz que moro “ajuda a construir um Estado fascista”. Como ele faz isso? 

O neofascismo que ameaça boa parte do mundo, hoje, não é e nem poderia ser idêntico ao nazifascismo do século XX, mas se aproxima dele em pontos-chave.

Moro ajudou esse neofascismo ao sabotar a disputa eleitoral, que deveria estar no cerne de uma democracia representativa, promovendo uma perseguição contra Lula de forma flagrantemente seletiva, como comprovou o jornalista Glenn Greenwald com a Vaza Jato.

A seguir, beneficiando-se diretamente disso, entrou no governo que ajudou a eleger e, como ministro, continua praticando sua “justiça” seletivamente, provendo aos amigos, tudo – inclusive vistas grossas aos graves indícios de corrupção de Flávio Bolsonaro – e aos inimigos, uma versão parcial e autoritária da lei.

Por fim, expôs todo o seu pendor fascista com o “pacote anticrime”, no qual tentava solapar de vez as mínimas garantias constitucionais, recrudescendo a repressão através de absurdos como o “excludente de ilicitude”, que daria ao Estado carta branca para matar seus cidadãos “indesejáveis” ainda mais do que já faz hoje.

Autoritarismo, crescimento do poder repressivo estatal, solapamento das instituições, concentração de poder na mão de poucos agentes estatais, discurso nacionalista, perseguição da oposição, intolerância, racismo. Tá tudo aí.

Como impedir Moro de conseguir esse objetivo?

Essa é a pergunta que aflige a esquerda e o campo democrático no planeta inteiro. Não tenho as respostas, mas aprendi com meu avô a ter esperança na luta.

Creio que o neofascismo é o sintoma da desesperanças de milhões de pessoas que, diante da falência irreversível do neoliberalismo, se tornaram presa fácil para os mercadores do medo, do ódio, que vendem promessas de vitória a partir de narrativas de superioridade seja racial, nacionalista, de ódio ao diferente etc.

Esse fascismo inventa novos bodes expiatórios para a falência do capitalismo, angaria o apoio dos que não conseguem compreender um mundo extremamente complexo e contraditório e aproveita o tempo que vai conseguir se manter para se locupletar de tudo que pode.

Pra lutar contra isso, por um lado, creio que precisamos combater os caminhos pelos quais essa direita cativa com mentiras esses milhões de pessoas e, por outro, precisamos efetivamente propor outros modos de vida, que se contraponham a esse estado de falência social, econômica e ambiental a que o capitalismo nos trouxe.

É preciso dar a entrever, a nós mesmos, inclusive, a possibilidade de um mundo pós-capitalista. Não é fácil, mas essa luta não se construirá sozinha, calhou de sermos nós os que estão aqui para construir isso.

É possível dialogar com fascistas?

Não creio ser possível dialogar com fascistas, mas acho que é urgente dialogar com todos os milhões de brasileiros que, embora não partilhem de nossa agenda, até por desconhecê-la, tampouco são fascistas.

Pra isso, me parece igualmente urgente aprender a deixar de repercutir a tropa de choque da extrema-direita das redes e as declarações do governo e focar o máximo do nosso tempo em criar e comunicar propostas claras e lógicas a esses milhões de brasileiros que são vítimas do capitalismo, mas não se compreendem como tal.

Dito isto, responder a Moro parece uma contradição, mas não foi para dialogar com ele que o respondi e, sim, para falar a todos os demais que preservam alguma capacidade de escuta e reflexão, para que saibam que, neste país, houve um militar honrado, que viveu a vida inteira, até os 101 anos, defendendo com convicção a democracia e que se opunha a este governo.

Nunca imaginei que isto ganharia estas proporções, não era isso que eu desejava, muito menos quis angariar qualquer nível do ódio dessa extrema-direita contra meu avô, mas agi da única maneira que pude diante do gesto de Moro e creio que fiz jus à memória do Cel. Alexandrino, num momento em que seu exemplo de vida é essencial.