#MeuArtistaSecreto e a armadilha comprada pela militância de esquerda. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 21 de agosto de 2017 às 15:27

Quando falo do machismo embutido na cena musical alternativa brasileira, o faço a partir do lugar de mulher musicista.

Canto em uma banda de blues-farofa cujos demais integrantes são todos homens (mas feminista tem banda com homem? eu particularmente tenho, e eles tocam muito bem).

Uma vez saí do palco, depois de cantar com toda a minha alma, e um cara aleatório disse ao guitarrista: “Que bunda é essa da sua vocalista? Tá comendo?”

Não tá comendo, querido. E você também não vai comer. Nunca. Never. Jamé – porque você claramente é um babaca. Estamos produzindo arte juntos, mas isso está aquém da sua limitada compreensão.

Então, sim, a cena alternativa é machista. O rock – da velha e da nova guarda, se é que o rock, coitado, tem nova guarda, – é machista. Desde sempre. O palco é, em geral, um lugar feito para homens.

Afora a cultura patriarcal, que é universal, há o plus: Se homens, só por serem homens, sentem-se autorizados a nos agredirem e violentarem das mais diversas maneiras, o que dizer de homens que sentem-se os verdadeiros Hendrix da pós-modernidade? É muito ego masculino pra lidar.

Todos os músicos com os quais me envolvi afetiva e sexualmente – sempre fui a maior Maria Palheta que você respeita – me sacanearam de alguma forma: traição, deslealdade, violência psicológica ou só sexo ruim, mesmo.

Vieram-me então vários nomes pra jogar no ventilador quando descobri a existência da tag #MeuArtistaSecreto.

Trata-se de uma tag sobre músicos abusadores que começou desde que a escritora Clara Corleone, ex-companheira de Felipe, vocalista da Banda Apanhador Só (banda indie hipster que você talvez não conheça), escreveu um relato no facebook – que atingiu milhares de pessoas – sobre a relação abusiva que mantivera com o ex (agressão física, exposição a DSTs, traições reiteradas), dando início a uma onda de relatos parecidos sobre músicos da cena alternativa, o que gerou inclusive uma lista de “músicos abusadores que você não deveria apoiar”, que ainda circula na rede.

Em resposta, o músico admitiu as agressões, se disse arrependido, e a banda decidiu suspender as atividades.

“Vou entrar na onda”, pensei. “Seria lindo”, pensei. “Imagina a cara deles”, pensei.

Só que não. Eu estaria certamente tão exposta quanto os homens que eu expusesse – ou mais –  e eu definitivamente não mereço e não quero isso. Não quero ter que reviver nenhum trauma e passar pelo constrangimento de provar que fui violentada – e decerto teria que provar, porque condenar alguém sem provas é uma atitude fascista que eu não quero que exista, em hipótese alguma, no meu país. E sobretudo porque temos que provar o tempo todo que não viemos da caixa de pandora.

Então, mesmo quando entendo a dor de uma mulher traumatizada por um relacionamento com um músico – porque, literalmente, sinto-a -, mesmo quando me sinto, por empatia, profundamente tocada pelo seu relato, mesmo compreendendo a importância de compartilhar essa dor, não posso deixar de pensar nos riscos de uma tag como essa na geração do ódio.

No ressentimento que impregna – e não poderia ser diferente – os depoimentos dessas tantas mulheres agredidas de várias maneiras, às vezes por anos a fio, o que acaba tornando seus relatos exaltados e consequentemente descredibilizados.

Descredibilizar-nos é o passatempo preferido do patriarcado (depois de assediar e matar mulheres, claro).

Penso, por outro lado, nos riscos de se colocar músico que trai e músico que assedia/estupra num mesmo saco de “músicos escrotos que não devemos apoiar.”

Além de injusto, é ineficaz, porque qualquer denúncia desacautelada feita por uma mulher no Brasil é ineficaz. Migas, vivemos no país do feminicida que tem fãs (alô, Goleiro Bruno).

A violência precisa ser denunciada, os músicos da “nova geração” precisam entender – nem que seja na marra – e que não aceitaremos suas músicas fofas compostas em vidas privadas completamente sórdidas, e mulheres precisam compartilhar com outras mulheres – e com quem quiserem –  suas dores, bastando para isso que sintam vontade, mas em um país com uma cena independente que vem lutando há muito tempo para se erguer, isso deve ser tratado, no mínimo, com responsabilidade pelos novos agentes da indústria cultural.

Limar músicos violentos é necessário e eficaz. MC Biel que o diga: assediou uma repórter, desistiu da “carreira” e foi substituído por Karol Conka em um show. Lembro-me que esse foi um belíssimo dia para existir. Agora ele está de volta com as mesmas músicas ruins, mas duvido que se sinta autorizado a assediar uma repórter novamente.

Limar músicos porque seguem a odiosa tendência promíscua do universo musical, no entanto, é desnecessário e ineficaz. Quase todo músico segue a odiosa tendência promíscua do universo musical. Logo, “limar” tornar-se-ia banal. Daríamos a eles a chance de banalizarem nosso grito, e não há nada que queiram mais.

Feminismo é estratégia. Ao contrário do que nos disseram, podemos sim ser estrategistas e não doces e emotivas, apenas. E no que concerne à exposição de homens que merecem ser expostos, a minha estratégia preferida é sempre a mesma: Cautela.

Apurar com afinco cada caso que se queira expor, precaver-se diante da descredibilidade que todas nós carregamos apenas por termos uma buceta no meio das pernas, e discernir, sempre com aquela frieza que os papéis tradicionais de gênero nos negaram, o que é realmente tão grave a ponto de tornar uma banda inteira desmerecedora de nosso apoio – coisas que, definitivamente, a página autora do listão de músicos que não devemos apoiar aparentemente não fez.

Alguns setores da militância feminista – em geral, e não por acaso, os mais disseminados na mídia –  precisam adotar um discurso menos exaltado e mais estratégico, por mais difícil que seja – acreditem, eu sei o quanto – fazer dessa militância menos ressentida, já que todo coletivo é feito de pessoas e pessoas são feitas de traumas complexos.

Ou isso, ou a música brasileira estará, em poucos anos, fadada a um patrulhamento tóxico e destrutivo para as artes em geral – e músicos, a despeito disto, continuarão assediando e estuprando livremente porque nós, mais uma vez, não teremos sido ouvidas.