
A forma como a mídia trata a operação policial que deixou 121 mortos no Rio de Janeiro, incluindo quatro policiais, revela um padrão histórico de naturalização da violência de Estado.
O enquadramento do episódio repete o roteiro usado na campanha e depois no governo de Jair Bolsonaro, quando a imprensa tratava suas declarações criminosas como folclore e suas ações como um fato da vida. O resultado foi, entre outras coisas, uma tentativa de golpe e milhares de cadáveres na pandemia.
Entre os 117 suspeitos mortos no Complexo da Penha, pelo menos 30 não tinham passagem pela polícia, segundo identificações feitas no IML. Nenhum constava na denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro que embasou a operação.
Ainda assim, jornais, rádios e emissoras de TV passaram a falar em “guerra contra o crime”, expressão que, além de imprecisa, legitima o massacre porque, afinal, do outro lado estão soldados inimigos que podem ser “neutralizados” com tiros e facadas nas costas — e, na sequência, atirados no mato.
As emissoras repetem, bovinamente, as falas dos governadores de extrema-direita, Cláudio Castro à frente, que buscam fundar um sistema de segurança paralelo, autônomo, guiado por retórica militar e sem controle judicial. O governo do Rio, por exemplo, celebrou a operação como “um sucesso”.
A dinâmica lembra a cobertura internacional de conflitos assimétricos: imagens produzidas pela própria Polícia Militar são exibidas no Jornal Nacional como se fossem furos de reportagem — da mesma forma que o Exército de Israel divulga vídeos para justificar o genocídio em Gaza por causa das “barbaridades do Hamas”. A locução canastrona de William Bonner torna tudo mais bonito.
Aliás, numa entrevista idiota de Bonner a respeito de sua saída do programa, ele defendeu que não pode emitir opinião porque o JN é “legalista e humanista”. “Imagina se a gente fizesse no Jornal Nacional comentários sobre a operação policial desta semana”, falou. Sim, o certo é fazer propaganda da chacina, especialidade da casa.
🚨URGENTE – Jornal Nacional chama traficante de traficante, diz que a polícia tentou proteger inocentes, afirma que pessoas tiraram roupa de guerra dos criminosos e mostra que a PF não quis participar da operação pic.twitter.com/ui2wGGHG4K
— SPACE LIBERDADE (@NewsLiberdade) October 30, 2025
A palavra “narcoterrorismo”, importada do léxico da política externa de Donald Trump, vai se espraiando. É com esse termo que os EUA bombardeiam sem mandado supostos traficantes no Caribe, sob o pretexto de combater o tráfico internacional de drogas. O mesmo vocabulário se infiltra no noticiário brasileiro, repetido até ganhar status de verdade absoluta.
É um erro atribuir a tragédia apenas à Polícia Militar e à Polícia Civil. Ambas foram instrumentalizadas por um projeto de poder, que transforma agentes do Estado em soldados de uma cruzada ideológica. Castro não apenas autorizou a operação: ele a usou como palanque, tentando consolidar sua liderança entre os que veem a violência como política pública. O resultado é uma inversão perversa — quanto mais mortos, mais “eficiente” parece o Estado.
A chacina não é um erro operacional, mas o desfecho lógico de uma política que faz da morte uma forma de governo. É plataforma de lançamento da campanha da extrema-direita para 2026. Mais uma vez, o jornalismo se torna cúmplice e indutor da selvageria.
Essa gente sente falta do cercadinho de Bolsonaro e quer mandar o país para lá.