Pedro estava em seu pequeno apartamento de jornalista solteiro. O clássico entre os jornalistas: muitos livros e discos, pouca ou nenhuma organização, garrafas variadas de bebida, comida precária. Roupas, em geral baratas, espalhadas pelos cômodos, algumas delas no chão. Gravuras bem escolhidas, e jamais caras, nas paredes. Alguns pôsteres. Um deles, seu predileto, mostrava a cena final de Butch Cassidy: os dois mocinhos feridos, revólveres em ambas as mãos, correndo rumo à morte ignorada. Um retrato do pai. Pedro estava deitado na cama baixa.
“Gostaria tanto de ter dado um jeito em seu apartamento e em você”, disse Carol. Ela estava se vestindo, na beira da cama, e ao mesmo tempo indo embora. Naquela tarde, tinha avisado a Pedro que o caso deles acabara. O marido banqueiro começara a suspeitar de que algo estranho estava acontecendo com a mulher, e tudo ficara complicado.
Carol amava Pedro, mas não a ponto de colocar em risco sua vida de mulher da sociedade paulistana. Não era apenas o marido que estava em jogo, mas o círculo de amigos, os jantares e as festas e os almoços em que aquela pequena elite fugia do tédio à base de flertes entre os casais, bebida fina e antidepressivos da última geração.
“Sinto que fracassei”, disse Carol. “Saio da sua vida e você está do mesmo jeito que estava quando entrei nela.”
“E você, você mudou em alguma coisa?”, Pedro perguntou.
Ela riu, e quando isso acontecia seus enormes olhos verdes brilhavam como faróis solitários num mar bravio e remoto.
“Melhorei muito no beijo, com certeza. Pedro. Jamais existiu antes para mim e nem vai existir no futuro um beijo como o nosso. Eu tinha vontade de te beijar pela eternidade. Disso, do beijo, é que vou sentir mais falta. Não que do resto não vá sentir, mas …”
“Mil cópulas não valem um grande beijo”, disse ele. “Li isso outro dia num blog.”
“Legenda, por favor.” Sempre que ele usava uma palavra que ela desconhecia, ela pedia a legenda.
“Sexo. Cópula é uma maneira vulgar, mas interessante, de dizer sexo. Fazer amor também é vulgar, só que é desinteressante”, ele disse, e sorriu.
“Gosto da sua risada, Pedro. Também vou sentir falta dela. Risada de menino. Inocente. O tempo transforma a risada numa coisa maliciosa, mas você conservou a inocência no riso.”
“Também gosto da sua. Um escritor, não sei qual. Um grande escritor. Ele disse que contava nos dedos o número de mulheres capazes de gargalhar sem ficar ridículas. Esqueci o nome do escritor, mas não a frase. Você é um caso desses. Ri e gargalha com classe.”
“Você me acha calculista por eu estar indo embora, Pedro? Uma vez você disse que eu parecia uma máquina de calcular.”
“Você disse que se sentia fracassada por não ter dado um jeito em mim e no meu apartamento. O meu fracasso foi não ter transformado você numa mulher irresponsável como eu, Carol. Era uma missão acima das minhas forças, agora eu entendo. Mas num certo momento eu achei que podia o impossível com você. Sou … sou … sei lá, um otimista amoroso. Ou tolo.”
Ela acabara de se vestir.
“Vou sentir falta deste seu vestido”, ele disse. Era um vestido de tecido fino e de muitas transparências. Um decote grande e algumas rendas. Quem o escolhera, pacientemente, fora o marido de Carol. Numa manhã de sábado ele a acompanhara a uma loja fina do Iguatemi, e ela experimentou vários vestidos. Pedira ao marido que escolhesse aquele que mais a fizesse irresistível. Carol estreou o vestido com Pedro.
“Só não te dou agora o vestido porque, bem, porque bem não dá pra sair assim daqui”, disse Carol.
Pedro riu. Lembrou-se de um episódio de Friends em que a namorada de Ross pedia a ele, na despedida, que lhe desse de recordação uma camisa rosa que ele amava. Ela já estava com a camisa na mão. Era uma cena romântica. Ele pensa por um instante e diz, firme: “Não”. Ao mesmo tempo, pega de volta a camisa. O jeito Friends de lidar com cenas românticas.
“Pedro. Também vou sentir falta da imagem de você cheirando os dedos.”
Pedro riu. “Carol, é melhor você parar de falar assim. Sou meio sentimental, e não quero fazer uma cena na hora da despedida. Não quero que lágrimas atrapalhem a última visão de você.”
“Você dizia que era o melhor cheiro do mundo”, disse Carol.
“E é. A combinação de seu perfume de mulher rica com sua essência íntima de fêmea. Uma vez eu fiquei um dia inteiro sem lavar as mãos. Quando estava desanimado levava as mãos ao nariz e sorvia o ar como um mergulhador que demora a subir.”
O celular de Carol tocou. Era o marido. Pedro entendeu que a hora chegara.
“Você. Você canta para mim uma vez, a última vez? Aquela música.”
Ela sabia bem qual era a música. Pedro era um esnobe cultural, e gostava do seu esnobismo. Jamais ouvira música espanhola romântica. Desprezava Julio Iglezias e outros cantores similares. Até o dia em que Carol, do nada, começou a cantar para ele Corazon Partido.
Jamais ouvira esta música. Carol não cantava como uma profissional, mas era afinada e tinha voz bonita. Secretamente, ele pusera Corazon Partido em seu iPod, e às vezes escutava obsessivamente. Carol, nessas horas, aparecia em sua mente, linda, vivaz, apaixonada, arrebatadora, os imensos olhos verdes fixados nele. Carol o influenciara mais do que Pedro poderia imaginar. Nenhuma outra mulher antes conseguira fazê-lo gostar de uma música romântica e brega espanhola.
Ela atendeu ao pedido de Pedro. E después de ti, después de ti no hay nada. Era o trecho de que mais ele gostava. Quando ela terminou, disse a Pedro: “Posso também pedir uma coisa?”
Pedro aquiesceu com a cabeça.
Ela foi a Pedro e o beijou. Já na porta, ela disse a ele: “Aquele livro. O primeiro que você me deu. Dostoievski. A frase final. Tudo podia ter sido tão diferente. Para nós também, Pedro. Tudo podia ter sido tão diferente. Mas … mas eu também não quero que lágrimas distorçam minha última visão de você, Pedro. Pedro. Meu Pedro.”
E então ela partiu, apressada, rumo a seu marido e a sua vida de mulher da sociedade.