Militares e a reforma da Previdência: “Excluam-nos fora dessa”. Por Miguel Enriquez

Atualizado em 11 de janeiro de 2019 às 13:32
Bolsonaro participou da formatura de uma turma de paraquedistas e conversou com generais do Exército
Fernando Souza / AFP

POR MIGUEL ENRIQUEZ

“Farinha pouca, meu pirão primeiro”, reza um velho dito popular. Pouco utilizado hoje em dia, o ditado ganha vida nova para  definir à perfeição a postura dos militares brasileiros diante da polêmica proposta de reforma da Previdência, definida por 10 entre 10 integrantes do novo governo e seus apoiadores da mídia corporativa e do chamado mercado, como o fator decisivo para recuperar a economia e recolocar o País na rota do crescimento.

Em princípio, a caserna em peso, hoje reinstalada no poder, é favorável à uma revisão radical das regras do sistema previdenciário, com o corte de benefícios, redução da idade de aposentadoria para homens e mulheres e eliminação de privilégios, sobretudo os concedidos aos servidores públicos, entre outras providências.

Com um pequenino porém. Como diria o seu Peru, um antigo personagem da Escolinha do Professor Raimundo, célebre programa humorístico do grande Chico Anísio, a turma de farda dá “o maiorrr apoio” aos planos do ministro da Economia Paulo Guedes. Desde, é claro, que fique de fora dessa.

Simples assim. 

Essa defesa empedernida da preservação das vantagens adquiridas pela caserna ganhou força na última semana. Como se fosse uma ação orquestrada, por exemplo, na quarta-feira (9), três ocupantes de postos de comando (dois ministros e o comandante da Marinha) defenderam os interesses corporativistas. 

“Todos pediram para deixar os benefícios dos militares de fora das mudanças: o novo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva; o comandante da Marinha, almirante Ilques Barbosa; e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz”, registrou o jornal O Estado de S. Paulo.

Ilustre desconhecido da esmagadora maioria do povo brasileiro, o  comandante da Marinha, almirante de esquadra Ilques Barbosa Júnior, que ganhou uma fulminante notoriedade ao revelar à nação, em seu discurso de posse, que o Brasil e os Estados Unidos estiveram juntos em “três guerras mundiais”,  foi o mais veemente defensor da blindagem às supostas peculiaridades dos homens e mulheres de farda. 

“Nós não temos Previdência, mas, sim, proteção social dos militares”, afirmou Barbosa Junior, em conversa com jornalistas após cerimônia de transmissão do cargo, realizada no Clube Naval, em Brasília, com a presença do presidente Jair Bolsonaro e de seu vice Hamilton Mourão.Na ocasião, o almirante  aproveitou para esclarecer que o terceiro conflito mundial a que se referia era a “Guerra Fria”, protagonizada pelos Estados Unidos e pela então União Soviética, entre 1945 e 1991.

Ainda de acordo com o Estadão, questionado sobre o aumento da idade para a aposentadoria da categoria, o comandante da Marinha disse que o tema é relevante, mas que ainda não possui opinião formada. “O tema, para nós que precisamos de higidez física para combate, para atuação, garantia de lei e da ordem, é importante. Temos que contribuir com o nosso país”. 

A exemplo da maioria dos seus pares, Barbosa Júnior apela para as tais peculiaridades da carreira militar para defender a manutenção dos privilégios.

“Fui incansável no esforço de comunicar as peculiaridades da nossa profissão, que as diferenciam das demais, fundamentando a necessidade de um regime diferenciado, visando assegurar adequado amparo social aos militares das Forças Armadas e seus dependentes”, afirmou.

Evidentemente, a carreira militar se distingue da maior parte das categorias do setor público. Seus integrantes estão sujeitos a mudanças constantes de local de trabalho, muitas vezes em regiões remotas do país, não recebem horas extras, não têm direito à greve e devem estar preparados para enfrentar eventuais inimigos externos e internos.

Nesse caso, a melhor contribuição para enfrentar o problema, seria a comparação com o tratamento dado às Forças Armadas de  outros países. Com as dos Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo. 

Como se sabe, os militares americanos e britânicos têm se envolvido ao longo dos anos, em um número muito maior de conflitos ao redor do mundo, do que seus colegas brasileiros, correndo, portanto, muito mais risco de vida. 

O que não é exatamente o caso dos brasileiros, que desde a Segunda Guerra Mundial praticamente foram poupadas de confrontos armados no exterior, com exceção das Missões de Paz da OEA e da ONU ( Canal de Suez, em 1963, República Dominicana, em 1965, Haiti, de 2004 a 2017). Do ponto de vista da defesa do território nacional, o último grande desafio foi a Guerra do Paraguai, em 1865, vencida pelo saudoso Duque de Caxias.

Mesmo assim, a despeito da relativa vida mansa das últimas décadas, no confronto com o tratamento dado às carreiras de americanos e britânicos fica evidenciado o tratamento privilegiado e protecionista da concedido aos militares brasileiros, mostra um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado em 2017.

No Brasil, os militares de ambos os sexos, têm direito à aposentadoria com vencimentos integrais, estendida às pensões de suas viúvas ou viúvos, com apenas 30 anos de serviço. Com isso, a maioria (55%) se aposenta entre 45 e 49 anos, ainda em boa forma física e intelectual. Enquanto entre eles predominam os quarentões, no INSS o maior contingente de aposentados é de sessentões, que representam 49% do total,

Ao contrário do Brasil, cujo sistema de carreira e aposentadoria militar data dos anos 1960, os Estados Unidos e Reino Unido promoveram uma reforma nos seus, em 2015, e 2013, respectivamente. 

Nos Estados Unidos, o tempo mínimo para aposentadoria varia de 20 a 30 anos de atividade. No primeiro caso, o militar tem direito ao equivalente a 50% do último vencimento na ativa. Com 30 anos, a fatia aumenta para 60%. Já em caso de morte, a pensão da viúva ficará em 50% da aposentadoria do cônjuge, ao contrário do que acontece no Brasil, onde é integral.

Ainda conforme o trabalho do TCU, nos Estados Unidos, bem como no Reino Unido, o pagamento integral da pensão ou aposentadoria só acontece por morte em serviço ou invalidez. permanente do militar.

No Reino Unido, a idade exigida para a aposentadoria é de 65 anos. Caso o candidato  tenha 30 anos de serviço ativo, receberá 63% do salário, Sua viúva ou viúvo, também  ao contrário do que ocorre no Brasil, receberá 62,5% dos proventos do aposentado. 

Incomodado, em documento oficial, o Ministério da Defesa considerou que a comparação com os Estados Unidos não é válida. Os argumentos: na terra de Trump, os militares recebem educação de alta qualidade. Além disso, têm direito a descontos em determinados impostos.

Então, que tal compararmos com Portugal, nosso avozinho, cujos militares, ao contrário de seus camaradas da Pindorama,   estiveram metidos numa sangrenta guerra em suas colônias africanas, entre 1961 e 1974?  Em Portugal, a idade mínima exigida é de 55 anos e a aposentadoria, após 30 anos de atuação, representa 83% do salário da ativa.

Nesses países, principalmente nos Estados Unidos e Reino Unido é bem provável que as peculiaridades da atividade de seus militares, ainda hoje guerreiros em tempo integral, sejam bem mais peculiares em relação ao restante da sociedade, do que as peculiaridades dos militares brasileiros, que certamente são menos sacrificantes do que as de seus irmãos de armas de além mar. 

Essas diferenças nos mimos e benesses concedidos aos soldados de Caxias, são ainda mais incompreensíveis, quando se examina os custos de tanta benemerência para os cofres públicos.

Portanto, por qualquer ângulo que se avalie, a exclusão dos militares da reforma da Previdência, não tem o menor sentido, a não ser instalar definitivamente uma casta de privilegiados no país. O que, diga-se, será um tiro no pé para os defensores da reforma da Previdência.

Por isso mesmo, Guedes e sua equipe defendem fervorosamente  a inclusão dos militares na reforma, convencidos de que Bolsonaro, como ex-capitão do Exército, deveria dar o exemplo, justamente quando pede sacrifícios à população que será afetada por ela.

Não por acaso, no exato momento em que se exacerbam as divergências no governo quanto ao caminho a seguir, o Estadão publica em sua edição desta quinta feira uma reportagem mostrando que o rombo da previdência dos militares cresceu mais do que o do INSS, no ano passado.

Os números são, de fato, alarmantes. Segundo o jornal, entre janeiro e novembro de 2018, o déficit da previdência dos militares cresceu nada menos de 12,8%, cerca de quatro vezes a inflação do período, batendo na casa dos R$ 40,5 bilhões. Já o déficit dos aposentados pelo INSS aumentou 7,4%, chegando a R$ 200 bilhões.

Detalhe: com apenas 378 mil beneficiários (dados do TCU para 2016), o rombo do dito “sistema de proteção social” dos militares, evocado pelo almirante Barbosa Júnior, representa nada menos de um quinto do déficit das pensões e aposentadorias de 26,9 milhões de inativos, abrigados sob o guarda-chuva do INSS.

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