Militares incentivaram garimpo predatório. Por Denise Assis

Atualizado em 8 de março de 2023 às 12:46
Avanço do garimpo ilegal em território indígena Yanomami. (Foto: Reprodução)

Por Denise Assis

O legado da ditadura (1964/1985) foi nefasto. Isto todos nós sabemos. O que não é muito difundido é que um desses legados foi o garimpo ilegal e predador. Todo esse descaminho da corrida do ouro veio desaguar no genocídio dos Yanomamis, uma comunidade com algo em torno de 20 mil indígenas, propositalmente abandonados à própria sorte. Sem assistência, caíram em estado de desnutrição grave, que já matou cerca de 570 crianças, como foi bastante difundido.

A cadeia do ouro ilegal reúne várias modalidades de crimes: tráfico de drogas, invasão de terras públicas, contrabando de mercúrio, tráfego aéreo clandestino, como apontou a jornalista Míriam Leitão, em sua coluna de domingo (05/03), destrinchando um relatório elaborado pelo Instituto SocioAmbiental (ISA), em que é demonstrado o crescimento da atividade ilegal e aponta caminhos para sanar o problema.

No momento, a saída é apontada numa Medida Provisória que tem sido debatida em Brasília, a fim de implementar a “nota fiscal eletrônica”, em substituição ao princípio da “boa fé”, que concede aos vendedores de ouro a presunção de que eles estão dizendo a verdade sobre a origem legal do produto. Uma vez aceito, o ouro pula para o mercado legal, passando a circular como mercadoria idônea. Uma farra.

A origem do problema, como foi dito acima, está intimamente ligada ao momento em que os militares estavam para deixar o poder, pouco antes de 1985, e a inflação batia em 227% ao ano. Havia um rastro de morte no ar (434 mortos e desaparecidos – número do relatório final da CNV). Mães, mulheres, filhos, familiares, choravam seus entes queridos sem o direito de enterrá-los e o país se horrorizava com os relatos dos que sofreram nos porões da tortura. Estima-se que cerca de 2.500 mulheres foram estupradas enquanto estavam nas dependências do Estado brasileiro.

Atual situação de calamidade dos Yanomami. (Foto: Reprodução)

O país não tinha reservas e havia lançado mão dos recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), para obras faraônicas, como a rodovia Transamazônica, que ligava nada a lugar nenhum. Até tomarem o poder, em 1964, os militares não tinham essa projeção na sociedade civil. Ocasionalmente ocupavam posições civis, em parte por concessão dos políticos, em acordo entre eles. De 1967 em diante a situação se inverteu, ou seja, os civis que ocupavam cargos no governo o faziam por concessão dos militares.

No início de 1960, de acordo com Maria Victoria Benevides, socióloga e com especialização no campo da Ciência Política, havia cerca de 7 mil militares atuando na iniciativa privada. Esse número subiu para 15 mil até a década de 1980. Aqui é preciso destacar que em quatro anos de Bolsonaro foram cerca de 8 mil os militares pendurados em cargos civis. Proporcionalmente, uma verdadeira e veloz “ocupação”.

No seu livro “MATA! – o major Curió e as guerrilhas no Araguaia”, o jornalista Leonencio Nossa, que teve acesso aos arquivos do Major Curió – carrasco dos guerrilheiros no Araguaia -, descreve minuciosamente o início da atividade do garimpo, em terras amazônicas.

Àquela altura, os militares enfrentavam o descrédito da população, sufocada por anos de censura, arrocho salarial e decepcionada com o “conchavão” tecido pelo general Leônidas Pires Gonçalves – que em troca receberia o cargo de ministro do Exército -, e o chefe do SNI, Octávio Medeiros, para barrar a aprovação das diretas -, levando a escolha do novo presidente para o colégio eleitoral.

Com o país à beira da falência, Medeiros viu na atividade apontada e dominada por Curió, uma bela oportunidade, pois vislumbrava que as notícias do ouro trazida pelo major, daria ao país uma certa folga, diante da crise internacional – motivada pela carência do petróleo -, e ainda aproveitaria a alta do metal na Europa.

Ouro pesado em balança de vender carne

A notícia de que na fazenda ao lado da de João Naves, um agricultor, – onde hoje é a cidade de Curionópolis -, no Norte do país, no coração da Amazônia, foi encontrado ouro, naquela ocasião (início dos anos de 1980), levou Genésio, o vizinho, a abrir a propriedade para garimpeiros tirarem o metal em parceria. Genésio ficava com 30% do que era obtido, descreve Leonencio, em “Mata”. João e os primos ganharam de Genésio “uma frente”. Cercaram o local e ao voltarem para iniciar a mineração os garimpeiros já tinham tomado a área. Segundo um deles, a profusão de ouro era tamanha que não era pesado em balança apropriada, mas sim, em balança de pesar carne.

Conforme descreve Leonencio Nossa, “Curió entrou no garimpo com um crachá de repórter da sucursal da TV Globo.” (Sempre ela). “Estava ali como araponga. (…) há pouco tempo, “meses após a prisão das Dinas – guerrilheiras tidas como desaparecidas -, que Curió realizou a Operação Pindaré, última ação contra a guerrilha.”

Eram tempos desfavoráveis a Curió, com a promessa de “abertura lenta e gradual” de Geisel e a chegada de João Figueiredo ao poder, prometendo acelerar o processo, o que reduzia em muito o espaço do agente na rede de inteligência. Curió, porém, trazia em mãos um trunfo: relatórios pormenorizados sobre a Amazônia. Tudo sobre a atuação da esquerda e, o que de fato interessava agora: o mapeamento de todas as potencialidades minerais. Os militares saíram sujos daquela “guerra”, mas obtiveram um razoável conhecimento da floresta.

Curió trazia tudo anotado. Começava por descrever as suas primeiras viagens como “repórter da TV Globo” a Serra Pelada, e o que relatou para o General Newton Cruz, então chefe da agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI-1977 e 1983). O major denunciava a existência de contrabando de ouro e Newton Cruz o desafiou a apresentar provas.

Aqui é preciso dar um salto para o governo de Bolsonaro (2019/2022). Não foi uma nem duas vezes que o distinto público ouviu o “capitão” se referir aos estudos que comprovavam a existência de verdadeira “tabela periódica” no solo amazônico. Tampouco nos esquecemos da deferência (mas fora da agenda oficial) com que recebeu o Major Curió e esposa em seu gabinete, no dia 4 de maio de 2020 – matéria do jornalista Rubem Valente, no site Uol. Nunca é demais lembrar que o Major Curió foi denunciado seis vezes pelo Ministério Público Federal por participação em sequestros e assassinatos no Araguaia, onde atuou no combate à guerrilha.

Não é difícil supor que tanta bajulação de Bolsonaro a um dos seus “ídolos” – ele incensa os torturadores -, tenham rendido confabulações e trocas de informação sobre o mapa da tal “tabela periódica” da mineração na Amazônia. Depois de viúva, a mulher de Curió voltou a ser recebida em palácio e as filhas obtiveram pensão referentes ao título de “marechal”, concedido pelo ex-presidente. Aí tem. Some-se a isso a fidelidade e cumplicidade da “família militar”.

Tampouco é exagero destacar a intrínseca relação do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, com a liderança garimpeira, José Altino, e as demais ligadas à atividade predatória. Teriam eles herdado o “mapa das minas”?

De volta à transição democrática, o general Newton Cruz autorizou Curió – conforme descrição de Leonencio Nossa -, a voltar de avião ao garimpo, para conseguir provas de contrabando. Curió prendeu um contrabandista que carregava 92,4 quilos de ouro. À tarde mandou o piloto da FAB fazer o plano de voo para Belém, de onde seguiria para Brasília. Newton Cruz levou Curió para fazer uma exposição para o governo. Durante quatro horas, “numa sala do Centro de Informações do Exército (CIE), o agente fez, uma explanação para o ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, e o presidente da Caixa Econômica Federal, Gil Macieira. Defendeu a exclusividade na compra de ouro do garimpo e um trabalho de massificação, para contrapor à esquerda. Macieira foi contrário à ocupação do garimpo. Dizia que era inviável o esquema de compra de ouro.

Newton Cruz perguntou se precisava de tropa no garimpo.

– Lá não é para tropa não, general. É para geólogo. Eu faço o trabalho de conscientização – respondeu Curió.

Octávio Medeiros aprovou a intervenção em Serra Pelada.” Entregou o garimpo a Curió.

Nossa descreve em minúcias toda a implantação da devastação na Amazônia, empreendida com o total apoio da ditadura. Revela que “quando os primeiros guerrilheiros chegaram à Amazônia, uma onça troy, (31,1 gramas), medida de massa usada na venda de metais, não chegava a quarenta dólares. No início de Serra Pelada, no período de crise do petróleo, o valor da onça troy era de 633 dólares em Londres. Estimava-se que essa quantidade valeria novecentos dólares em poucos meses.

A pedido de Curió, Newton Cruz transferiu um armazém inflável da Cobal, empresa do governo que vendia alimentos a preços baixos, de Maceió para Marabá. Nesse momento Curió vencia a corrida do ouro que tratava desde a chegada à Amazônia para combater a guerrilha.”

Assim, Leonencio Nossa descreve a saga dos militares se chafurdando na lama de mercúrio das crateras do garimpo ilegal, da mesma maneira que o general Villas Boas esperneou por um naco da região de Raposa Serra do Sol, uma área de terra indígena situada no nordeste do estado brasileiro de Roraima, nos municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang.  A região faz fronteira com a Venezuela. Não é de hoje que os povos originários estão no caminho dos herdeiros do mapa das minas de Curió. Foi assim que tudo começou.

Originalmente publicado por Jornalistas pela Democracia

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