“Militares que falaram em intervenção serão punidos, mas Marine Le Pen lucrou com o caso”, diz ao DCM especialista francês

Atualizado em 29 de abril de 2021 às 8:32

Dezoito generais franceses serão punidos depois de assinarem uma carta, publicada na revista ultraconservadora Valeurs Actuelles, que defende uma intervenção militar. De acordo com o jornal Le Parisien, eles vão passar por um conselho disciplinar e os que ocupam as posições mais altas na hierarquia podem ser reformados antecipadamente.

“Considero que quanto mais alta a responsabilidade, maior a obrigação de neutralidade e exemplaridade”, justifica o general chefe da Defesa François Lecointre.

As palavras podem fazer inveja aos brasileiros, já que nenhuma sanção foi aplicada a militares que ameaçaram intervir caso o STF concedesse um habeas corpus ao ex-presidente Lula em 2018, como fez o general Eduardo Villas Bôas.

“O contexto é grave, a França está em perigo, são perigos mortais que a ameaçam. Nós, mesmo reformados, permanecemos soldados da França, não podemos, nas circunstâncias atuais, ficar indiferentes ao rumo de nosso belo país”, disse o manifesto golpista.

O texto, dirigido ao presidente Emmanuel Macron, aos membros de seu governo e parlamentares, lembra bem a retórica já conhecida e mobilizada pelos governos Trump e Bolsonaro. Atribui o “perigo” ao movimento antirracista, que segundo os militares quer provocar “o ódio entre as comunidades”.

“Eles desprezam nosso país, suas tradições, sua cultura e querem vê-lo se dissolver tirando-lhe seu passado e sua história. Assim, atacam estátuas, antigas glórias militares e civis analisando velhos discursos de séculos atrás”.

A retórica se aproxima do discurso trumpista anti-muçulmanos e da hostilidade bolsonarista às periferias. “Perigo que, com o islamismo e as hordas de periferia, geram o descolamento de múltiplas parcelas da nação para lhes transformar em territórios submissos a dogmas contrários à nossa constituição”.

Denuncia a ação do governo Macron frente aos coletes amarelos. “O ódio prevalece sobre a fraternidade de manifestações em que o poder utiliza a força como agentes supletivos e bodes expiatórios frente a franceses em coletes amarelos que expressam desespero”.

E sugere a falta de segurança como justificativa para um golpe. “A violência cresce a cada dia. Nós não podemos agir como espectadores passivos”.

O Exército é apontado como a única salvação nacional contra um caos inevitável. “Se nada for feito, o laxismo continuará a crescer inexoravelmente na sociedade, provocando no final uma explosão e a intervenção de nossos colegas da ativa em uma missão perigosa de proteção de nossos valores civilizatórios e de salvação de nossos compatriotas sobre o território nacional”.

Christian Piquemal, um dos generais militares que assinou a carta, já havia sido reformado em 2016 antecipadamente por participar de uma manifestação anti-imigrantes. “Vou lhe enviar uma carta dizendo que ele é indigno, suja o exército, o fragiliza fazendo dele um objeto de polêmica nacional”, disse o general Lecointre ao jornal Le Parisien.

“O Exército francês é legalista. Ninguém pensa que o exército francês vai tomar o poder. Não há estratégia política em torno disso”, afirma Jean-Dominique Merchet, especialista em questões de segurança nacional.

As medidas disciplinares anunciadas até o momento parecem lhe dar razão, o que não impede Marine Le Pen, candidata de extrema direita às próximas eleições pelo partido Rassemblement National, de apoiar o manifesto, por mais marginal que seja.

“Como cidadã e mulher política, concordo com suas análises e compartilho sua aflição. Como vocês, creio que é dever de todos os patriotas franceses, de onde quer que eles venham, de se levantar para o restabelecimento e salvar o país”, publicou a deputada na revista Valeurs Actuelles.

A pressão do grupo de militares que funcionou no Brasil, que favoreceu a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro, estaria servindo de inspiração para a extrema direita francesa ou tudo não passa de mera coincidência?

Para o jornalista francês Jean-Dominique Merchet, apesar das possíveis semelhanças, a influência de Bolsonaro é nula em seu país. “Não se ouve muito falar de Bolsonaro na direita na França”, diz o articulista do jornal L’Opinion, em entrevista ao DCM.

Marine Le Pen quer aplicar na França o receituário bolsonarista? “Eu não tenho a impressão de que ela esteja nesse negócio”, relata Merchet.

“Não há dúvidas que o exército está mais à direita do que a média nacional, que é o caso em quase todos os países do mundo. As pesquisas mostram que 48% dos franceses poderiam votar em Marine Le Pen no segundo turno”, explica.

DCM: Qual foi sua reação à polêmica em torno dos manifestos publicados pela revista Valeurs Actuelles, tendo em vista sua experiência e conhecimento em questões militares?

Jean-Dominique Merchet: Fiquei consternado. Consternado pelo conteúdo desta chamada. É um texto de extrema direita tradicional, um pouco simples, eu diria um pouco besta, que não diz muita coisa na verdade. Não há uma estratégia política por trás. É um cara escrevendo um texto no seu canto, um simpatizante de extrema direita há muito tempo, desde sempre inclusive.

Ele encontra generais reformados muito conhecidos por suas posições de extrema direita. Depois, embarca outros militares de redes antigas, de reformados…

Ao mesmo tempo, isso não vem do centro do Exército francês de hoje. Trata-se de pessoas idosas. O autor do artigo (Jean-Pierre Fabre-Bernadac) deixou o exército em 1987.

DCM: Há milhares de pessoas que aderem a esse manifesto.

Merchet: Claro. 5 mil pessoas assinaram esse manifesto. Hoje na França, as pesquisas mostram que 48% dos franceses poderiam votar em Marine Le Pen no segundo turno. Essa é a realidade política do país.

No primeiro turno, Marine Le Pen está com 25% das intenções de voto, portanto liderando. Então não é surpreendente que encontremos muitas pessoas de extrema direita. E há um apoio maior entre os militares e ex-militares do que na média nacional.

Marine Le Pen, principal candidata da extrema direita à presidência francesa. Foto: Jérémy-Günther-Heinz Jähnick / Wikimedia Commons

A única pesquisa sobre isso aponta que, no primeiro turno das eleições presidenciais de 2017, os militares e policiais foram aproximadamente 40% a votar em Marine Le Pen.

Esse texto é algo diferente. Não é algo que vem do Rassemblement National. Ele vem do movimento de extrema direita, mas não é organizado pelo Rassemblement National. Marine Le Pen disse “concordo com a constatação que vocês fazem sobre a situação, mas eu lhes convido a me apoiar, votem em mim e aplicarei a política que vocês esperam”.

Marine Le Pen está claramente numa lógica democrática de eleições que ele espera ganhar. Ela não está convocando o exército de forma alguma. Isso é certamente utilizado pelos seus adversários, mas não é verdade.

DCM: Ao mesmo tempo, esses militares apregoam um golpe de estado.

Merchet: A formulação que eles utilizam é ambígua. Evidentemente eles não utilizam esse termo. Eles dizem que se os políticos não conseguirem impedir a desintegração do país, isso obrigará o Exército a intervir. O que isso quer dizer? No fundo, esse é o sonho deles. Mas é tão realista quanto às pessoas que querem restaurar a monarquia na França.

Há monarquistas na França, pessoas que pensam que é preciso colocar um rei no trono da França. É um projeto tão marginal quanto o das pessoas que querem colocar o exército no poder. Ninguém pensa que o exército francês vai tomar o poder.

Ninguém acredita nisso. Não há estratégia política em torno disso. Para ser direto, são pessoas que estão fazendo uma encenação.

DCM: Marine Le Pen os convida a isso.

Merchet: Não. Ela não os convida a isso. Marine Le Pen faz política. Ela está em campanha às eleições presidenciais. Ela disse: eu ouvi sua mensagem, venham comigo, venham me apoiar nas eleições. Ela não disse “eu os apoio”.

Ela disse: eu compartilho do seu ponto de vista e, como eu o compartilho, não sobre o golpe de estado mas sobre a constatação da sociedade francesa – a imigraçao, a desordem, os coletes amarelos – e a partir dessa constatação eu lhes convido a vir se juntar a mim, a votar em mim e me eleger presidenta da República.

Se você considerar o que aconteceu nos últimos dez dias: segunda-feira passada, Emmanuel Macron inicia sua campanha para a reeleição, com uma grande entrevista para o (jornal) Le Figaro, com uma linha bastante à direita; há os candidatos Les Républicains (direita) Xavier Bertrand e Valérie Pécresse, que são muito fortes nessa linha segurança-imigraçao, etc. Todo mundo entendeu que é Marine Le Pen que é crível nesses temas e não os outros.

Ela conseguiu realizar uma pequena operação política, colocando-se no centro do debate. As pessoas a atacam, falam em golpe de estado. Não importa. Ninguém acredita que Marine Le Pen vai dar um golpe de Estado junto com o exército na França. Ela, ainda menos, porque sabe que pode ganhar dessa vez as eleições. Então ela não vai se lançar nisso.

Por outro lado, ela prendeu midiaticamente a atenção. Foi um êxito para ela. Eu digo isso sem apoiar Marine Le Pen. Mas é preciso olhar para as coisas objetivamente. Ela não saiu enfraquecida dessa história, contrariamente ao que alguns podem dizer. Ela ganhou alguma coisa.

DCM: Nos últimos anos no Brasil, militares entraram em cena dizendo que era necessário intervir diante de um cenário “caótico”. Alguns anos depois, Bolsonaro foi eleito. Há um paralelo com o que ocorre na França?

Merchet: O Exército francês é um exército legalista há sessenta anos, desde a Guerra da Argélia. Foi complexo. Houve uma tentativa de golpe de Estado. O que significa o exército ser legalista? Significa que se Marine Le Pen for eleita, o Exército apoiará Marine Le Pen. Não é porque é Marine Le Pen, mas porque é a presidenta da República.

Talvez haverá dois ou três oficiais que pediram demissão. Eles são marginais. O corpo militar será legalista como ele foi legialista em 1981 quando Mitterrand foi eleito e havia dez ministros comunistas. Houve alguns ministros que não gostaram e se demitiram mas globalmente o exército permaneceu republicano e rapidamente via com bons olhos o ministro da Defesa da época. Quanto a isso não há dúvidas.

Não há dúvidas tampouco que o Exército está mais à direita do que a média nacional, que é o caso em quase todos os países do mundo. É o caso dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da Alemanha.

DCM: Isso aproxima Marine Le Pen do bolsonarismo?

Merchet: Eu não tenho a impressão de que ela esteja nesse negócio. Não lhe interessa, na verdade. Ela não está numa agenda internacional. Não é o universo dela.

Não se ouve muito falar do Brasil, de Bolsonaro, no âmbito da direita na França. Ouvia-se falar um pouco de Donald Trump, mais de Putin, que poderia ser o “modelo” – não exatamente um modelo porque isso não faz sentido, mas com quem há uma certa simpatia. Mas Bolsonaro, honestamente não.

DCM: Por quê?

Merchet: Porque os franceses conhecem muito pouco o Brasil, eles pensam que é um país distante, pouco conhecido politicamente, com uma história muito diferente. Não acredito que haja identificação. O Rassemblement National tem uma visão muito nacional e não muito global. Não é da cultura deles. Isso não lhes interessa muito.

DCM: Ao mesmo tempo, Marine Le Pen foi a Portugal apoiar André Ventura…

Merchet: Sim, porque aí eles precisam. Eles têm uma estratégia europeia. Eles estão no Parlamento Europeu, eles precisam fazer alianças na Europa, porque a Europa é um espaço político importante.

Posso decepcionar os brasileiros, mas o Brasil e a América Latina de uma maneira geral – salvo Jean-Luc Mélenchon, que é apaixonado pelo continente latino-americano – não é um assunto de preocupação e de referência para os franceses.

Jean-Luc Mélenchon é peculiar, tem uma visão muito latino-americana da política, mas isso o isola mais do que o reforça. Não se compreende muito bem seu apoio a Chávez, seu apoio à Venezuela. Isso lhe causa mais problemas do que apoio na sociedade francesa.

DCM: O que o senhor diz é que não há interesse do Rassemblement National em se inspirar no fenômeno bolsonarista, e tampouco há semelhanças.

Merchet: Sim. Primeiro porque não houve ditadura militar na França. É uma diferença considerável. Então não há nostalgia. Em relação aos generais, trata-se de uma geração muito marcada pelo pós-Guerra da Argélia e também pela imigração argelina, algo centrado na história francesa.

DCM: Não são marcados pelo Marechal Pétain?

Merchet: Não. É distante demais. Hoje é distante demais.

DCM: Para esses generais?

Merchet: Não. São anti-gaullistas (hostis ao general Charles De Gaulle). O Exército francês nunca foi majoritariamente gaullista. É a Guerra da Argélia.

Vichy? É complicado, é difícil. Eles não falam mais disso. Acabou. Não é mais uma questão.

DCM: Quando esses generais criticam as manifestações das periferias, não há um desprezo pelas classes populares, como parece ser o caso dos generais que se juntaram a Bolsonaro?

Merchet: Depende de qual classe popular você fala. Se você se refere à classe popular de origem migrante, claramente.

São pessoas hostis à presença de muçulmanos em solo francês. E os imigrantes formam uma grande parte das classes populares.

Por outro lado, as classes populares brancas “da gema”, como dizem alguns, como mostram as últimas pesquisas, publicadas hoje no jornal Le Figaro, votam no Rassemblement National. Portanto, são as classes populares que apoiam Marine Le Pen, muito mais do que a burguesia ou a classe média.

No manifesto, eles citam os coletes amarelos, mas não para condená-los e sim para dizer que o exército não pode ser chamado a reprimi-los. Eles estão mais no apoio aos coletes amarelos.

Então não é uma hostilidade às classes populares. A hostilidade é contra as classes populares de origem imigrante. O Rassemblement National não é das elites. Pelo contrário, é uma contestação das elites.

Para Jean-Dominique Merchet, Marine Le Pen tem mais interesse na política de Vladimir Putin do que a de Bolsonaro. Foto: Wikimedia Commons