“Minha sexualidade afeta em parte a música”: DCM entrevista Malka, 1ª trans a tocar na Sala São Paulo. Por Zambarda

Atualizado em 25 de abril de 2018 às 22:53
Malka, primeira trans a tocar na Sala São Paulo. Foto: Nu Abe/Divulgação

No começo de março ocorreu o festival Eletrodrops no SESC Pompeia. Ao lado de artistas experientes como DJ Magal e Technique, Xërxës se apresentou com um visual andrógino muito similar a Ney Matogrosso. Entre alguns “Fora Temer” e “Fora Bolsonaro”, o som dos sintetizadores era conduzido por Malka.

Compositora trans de 33 anos, ela toca viola e diferentes instrumentos, como teclado, violão e outros. Trabalha em um estúdio em São Caetano do Sul.

Num concerto especial que ocorre nesta quarta (25), celebrando 50 anos da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, a Sala São Paulo terá a presença de João Bosco e Malka será a primeira trans que tocará no local.

O DCM entrevistou a compositora sobre a sua descoberta como trans, seu trabalho musical e a apresentação na Sala São Paulo.

Malka, primeira trans a tocar na Sala São Paulo. Foto: Nu Abe/Divulgação

DCM: Como você se descobriu trans?

MalKa: Foi um processo interno demorado, passei 32 anos presa a uma identidade de gênero que não era a minha. Quando se passa tanto tempo sendo quem não é, fica difícil você conseguir se separar da dor.

Eu não só não queria me separar da dor de ser um homem cis, como havia me acostumado com ela. Por idos de 2016 eu saí do Facebook para me dedicar mais aos estudos e ao trabalho. Parei de sair de casa, praticamente. Deixei de tocar na noite com banda ou discotecando e virei uma pessoa mais reservada.

Era como se fosse um anúncio do que estaria por vir, como se eu precisasse me afastar de tudo para passar por esse processo.

Ano passado eu voltei a ter as vontades que eu sempre tive desde quando eu era pequena, mas que foram duramente boicotadas por mim e principalmente pelo outros.

DCM: Que vontades?

Malka: Passei a ser mais feminina, ser eu mesma afinal. Lembro que eu já estava com esses pensamentos quando vi a Liniker pela internet. Naquele momento eu me emocionei muito pois vi alguém que tinha coisas em comum comigo cantando maravilhosamente bem.

Depois de um ou dois meses eu vi o documentário da Laerte [na Netflix] e então desabei.

Chorei como criança copiosamente e tive que encarar algumas verdades na minha vida, mas foi muito importante ter alguém como ela para ver que eu podia criar a coragem para transicionar já mais velha. Acabei indo pra terapia pra entender o porquê da transição ter demorado tanto e a partir daí fui passando pelos meus processos meio que escondida das pessoas.

Eu queria ter certeza de tudo isso antes de me assumir como trans. Quando postei as primeiras fotos travestida eu pensei muito antes. Hoje enxergo o quanto evolui na autoaceitação de quem sou.

Malka, primeira trans a tocar na Sala São Paulo. Foto: Nu Abe/Divulgação

DCM: Desde quando você estuda música, compõe e produz?

Malka: Comecei a tocar com sete anos de idade teclado e, desde aquele momento, isso foi paixão. Fui estudando música por conta própria praticamente a vida toda e então tive o prazer de ter um projeto musical chamado We Say Go.

Esse projeto de música eletrônica me fez viajar pelo Brasil, América do Sul e Europa. Aprendi muito sobre o showbiz e a correria para se viver de música no Brasil. Participei também da produção de trilhas sonoras para grandes marcas como Puma, Umbro, Capricho.

Daí resolvi me aprofundar e fiz cursos de produção de música eletrônica, de sintetizadores, mixagem e por aí vai.

Não satisfeita eu resolvi ainda continuar e fui estudar viola de arco na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, onde estou até hoje. Desejo no futuro estudar composição para orquestra e resolvi estudar primeiro um instrumento de cordas. Nesse meio tempo eu tive o prazer de tocar abrindo para grandes artistas que eu sempre admirei como Flora Matos, Black Alien, Planet Hemp, Raimundos, Peter Hook (Joy Division/New Order), Yelle, Twin Shadow, Gavin Raina (LCD Soundsystem) e, agora, vou tocar junto com o João Bosco.

Na parte de produção eu tenho trabalhado com muitos artistas bacanas. Algumas das últimas produções que saíram da minha mão tocaram com grandes artistas e conseguiram lançar seu material por gravadoras.

No momento eu estou trabalhando com os discos do Xerxes, BadSista, Animalia, Fefa e começarei os trabalhos com a Anastácia, a rainha do forró, meu maior trabalho até hoje.

DCM: Você acredita que a sua sexualidade tem conexão com a música que faz?

Malka: Eu diria que ela tem conexão com toda música que faço, seja ela de orquestra ou eletrônica. Quando toco viola na orquestra a minha alma também está impressa lá.

Diria para você que a sexualidade é somente uma faceta da minha personalidade e uma fatia do que influencia minha música.

Eu acredito que o meu espírito anarquista influencia igualmente o que componho, diria que meus amores influenciam, enfim, não creio que minha sexualidade determine objetivamente a música que faço, mas subjetivamente ela interfere de todas as formas.

DCM: Você sente que o ambiente musical paulistano ainda é muito machista e transfóbico?

Malka: Diria que o ambiente musical paulistano deseja muito a arte transgênero. Falta um pouco também de algo mais profundo nisso, no sentido de não enxergarem nossas apresentações somente como uma forma das pessoas ganharem dinheiro e chamar público.

Enxergam também como forma de gerar potência para uma camada da população que sofre todo dia que sai na rua. De forma geral, como pessoa trans, eu posso te dizer que o mundo é bem machista e transfóbico e o ambiente musical faz parte desse mundo.

Mesmo as pessoas que se dizem sem preconceitos, na frente de uma travesti elas não sabem agir e fazem perguntas que muitas vezes reproduzem preconceitos enormes sem perceberem. A cena trans de São Paulo hoje é muito forte, creio que pode ser uma das mais fortes do mundo nesse momento, e essa cena, sim, me acolheu tremendamente bem.

Ao contrário das pessoas cis que conheço desde sempre, essas pessoas não me questionaram em nada. Talvez porque só uma pessoa trans sabe o que é necessário para você ter coragem de sair todo dia de casa com o risco de morrer.

DCM: Como você foi convidada para se apresentar na Sala São Paulo?

Malka: Integro a camerata de cordas da FASCS (Fundação das Artes) e a convite da Orquestra Sinfônica da fundação integraremos o corpo de orquestra do aniversário de 50 anos da instituição. Ele será comemorado na Sala São Paulo.

DCM: Como será sua apresentação lá?

Malka: A apresentação se divide em duas partes: uma com um set de músicas com o grande João Bosco e depois uma set de música de orquestra, que orgulhosamente é um repertório de música brasileira.

DCM: Como você descobriu que era a primeira trans a se apresentar lá?

Malka: Quando comentei da apresentação em um grupo de internet que faço parte, surgiu o questionamento de uma outra travesti e então pesquisamos em algumas ONGs, perguntamos para todas as manas que conhecíamos.

Pelo que consta até o momento, eu realmente sou a primeira na Sala São paulo. Me emocionou muito isso e me deixou muito triste também, pois não deveria ser assim a história. Já é muito tarde para uma trans hackear e mudar esse lugar. Isso já deveria ter acontecido.

Mas como dizem: antes tarde do que nunca. Não é mesmo?

Malka, primeira trans a tocar na Sala São Paulo. Foto: Nu Abe/Divulgação

DCM: Tem alguma pergunta que eu não fiz e você gostaria de falar?

Malka: Gostaria de dizer que nós estaremos em todos espaços, que vamos hackear o que precisarmos hackear, e que sobreviveremos. Vivemos no país que mais mata travestis e transexuais no mundo.

Hoje eu sou uma violista que vai tocar na Sala São Paulo e quebrar uma barreira artística importante, mas desde o começo do ano eu passei por sete assédios verbais na rua, sendo que dois deles eu tive muito medo de sair machucada com um embate frente a frente.

Isso não é normal, isso não é somente comigo e isso acontece com minhas manas todos os dias nas ruas. 90% das pessoas trans se veem obrigadas a fazer programa para sobreviver, incluindo pessoas que eu conheço, pessoas com talento, pessoas maravilhosas, que ninguém dá uma chance.

É importante lembrar que eu estou aqui porque aproveitei de um privilégio cis e branco durante muitos anos mesmo sofrendo por dentro, e que isso me possibilitou gozar vários privilégios que tenho hoje, inclusive o de tocar na Sala São Paulo.

Existem muitas pessoas trans talentosas como eu ou mais que só precisam de um espaço e uma chance de existir. No mais, faço um chamamento para toda pessoa trans que gosta de música clássica e deseja estudar: venha!

Não tenha medo, porque a nossa identidade dentro dessa cultura já está sendo construída e no futuro será composta por mim e por todas outras pessoas trans que se aventurarem.