Minhas impressões de Cuba 2013

Atualizado em 10 de março de 2013 às 17:56

O jornalista Jomar Morais conta o que viu lá neste momento de transição.
 

Em Havana você se sente em Salvador
Em Havana você se sente em Salvador

DE HAVANA

A escolha do Brasil para início do périplo turístico-político da blogueira cubana Yoani Sánchez foi significativa. Neste momento não há país mais influente em Cuba do que o Brasil. Nem mesmo a Venezuela, que praticamente garante a sobrevivência econômica da ilha com o fornecimento de petróleo a preço camarada. Qualquer brasileiro que viaje a Cuba pode constatar isso, e comigo não foi diferente.

O Brasil soa como unanimidade entre castristas e anticastristas e como um ideal de vida para muitos cubanos, a despeito de seu nacionalismo apaixonado. Na verdade, os cubanos têm biotipo e perfil psicológico parecidos aos dos brasileiros e possuímos heranças africanas comuns, o que por vezes nos leva a achar que, estando em Cuba, estamos na Bahia. Nem mesmo no período em que uma Cuba marxista se declarava um estado ateu, Iemanjá deixou de comparecer todas as noites nas macumbas da santería, o candomblé cubano.

Laços culturais e até as novelas da Globo, que fazem sucesso na TV cubana, mantêm a proximidade entre nossos povos, mas não dá para esconder: é na política que ela se amplia e se fortifica desde a ascensão do PT ao Planalto.

Tive a sorte de chegar a Havana num momento de eventos que realçaram ainda mais esse aspecto da presença brasileira em no país, como é o caso da 3ª Conferência Internacional para o Equilíbrio do Mundo, promovida pela Unesco, e das comemorações do 160º aniversário do herói da independência cubana José Martí. Estrela maior da conferência da Unesco, com um discurso crítico aos Estados Unidos, o ex-presidente Lula foi recebido com honras de chefe de estado e conduzido a visitar as obras do porto e complexo industrial de Mariel, a maior obra de infraestrutura já realizada em Cuba, com financiamento do governo brasileiro, e hoje a grande esperança da economia cubana.

No mesmo evento, Frei Beto foi agraciado com um diploma de benfeitor da humanidade e, nas comemorações de Martí, o escritor Fernando Morais brilhou com o lançamento da edição em espanhol de seu livro “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, sobre cinco cubanos detidos há 15 anos em Miami.

Médicos cubanos: tradição de excelência
Médicos cubanos: tradição de excelência

Apesar da presença em Havana de muitos políticos e intelectuais do continente, foram Lula, Beto e Morais que ganharam destaque na TV e no “Granma” e “Juventud Rebelde”, os principais jornais cubanos, editados pelo Partido Comunista, hoje reduzidos a tablóides de 8 páginas. Os três brasileiros são nomes populares em Cuba, onde todos sabem que foi Frei Beto, amigo pessoal de Fidel Castro, quem o convenceu a desistir do ateísmo oficial e a promover a abertura religiosa na ilha.

Se a morte de Hugo Chávez mudar os rumos políticos na Venezuela, Cuba terá ainda mais razões para apostar no Brasil.

Cuba vive uma transição que, certamente, desembocará em mais abertura política e flexibilização das regras econômicas, como, aliás, já vem acontecendo sob o comando de Raúl Castro. O culto à personalidade do líder, uma marca da era Fidel Castro, cede à idéia de colegiado. Desaparecem os outdoors de exaltação socialista e, aos poucos, surgem incentivos ao empreendedorismo, como a abertura de pequenos restaurantes privados (os paladares).

Os novos dias ficaram particularmente claros para mim num momento em que cheguei à praça da catedral de Havana.  Uma equipe de TV inglesa filmava a exibição de um grupo folclórico. Quando o batuque cessou, do meio da multidão, alguém gritou: “Levem-me para Miami. Agora eu tenho passaporte!” Não são poucos os cubanos que querem sair do país e experimentar uma vida com menos controle do estado. Mas é um equívoco achar que a maioria deseja uma virada radical.

Quando se rompem a desconfiança e o medo que cercam as relações entre cubanos e, principalmente, entre estes e estrangeiros se o tema é política, percebe-se que eles aprovam as conquistas sociais básicas do socialismo, que suprimiram a fome, o racismo e a discriminação social e universalizaram a saúde e a educação, mas acham que a vida pede mais que isso. Há um descontentamento cada vez mais explícito com a burocracia e a incompetência que cerceiam vôos de criatividade, limita horizontes, gera privilégios e perpetua a dependência da ilha, um ponto que fere o exacerbado nacionalismo dos cubanos.

Embora todos reconheçam o efeito devastador do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos – o qual afasta da ilha os transportadores, tornando fretes, preços e mesmo o comércio impraticáveis para os cubanos -, é ao estado que responsabilizam pelo desabastecimento crônico e pelo imenso descaso com o consumidor. Fora da cesta básica assegurada pelo estado, a vida é cara, muito cara para os cubanos, e não há a quem se queixar.

Após 55 anos de socialismo, Cuba enfrenta, além de uma crise econômica, uma crise de valores morais. Devido aos baixos salários, até profissionais especializados em áreas técnicas estão migrando para o setor turístico, onde se sujeitam a trabalhar como faxineiros e ascensoristas na esperança de faturar mais com as gorjetas dos gringos. Outros se tornaram “jineteros”, os atravessadores que assediam turistas e que, não raro, se envolvem em trapaças e até crimes. A prostituição, que marcou o período da influência americana até 1959, voltou a mostrar a cara nas ruas de Havana, ao lado da mendicância, e cresceu o número de roubos e até assaltos.

Havana é pobre e não adianta buscar aqui facilidades high-techs a que estamos acostumados. A internet é básica, cara e, na maioria das vezes, não funciona. Nem os hoteis de luxo de cadeias internacionais superam limitações como essa. Mas Havana consegue driblá-las com o charme de seu patrimônio histórico-arquitetônico, a mística do duelo de Cuba com o gigante americano e, sobretudo, com a simpatia de seu povo.

À primeira vista, Cuba parece parada no tempo. Havana, com 2 milhões de habitantes, choca pela deterioração de grande parte da cidade. Mesmo áreas rurais de rara beleza e boa qualidade de vida, como Pinar del Rio e Vinhales, nos dão a impressão de viagem ao passado.

Havava  parece parada no tempo
Havava parece parada no tempo

Prender-se a isso, porém, seria avaliar Cuba apenas por critérios mercadológicos (e ideológicos), sem levar em conta sua saga histórica e sua opção por um modelo social que lhe parece mais justo e igualitário – um enorme desafio, tumultuado pelo jogo político interno e externo e, principalmente, pelo lado escuro da condição humana, hábil em sabotar toda utopia.

A importância estratégica de Havana no período colonial concedeu-lhe o privilégio da atenção e de investimentos espanhóis que a tornaram a cidade mais relevante do Novo Mundo. Nada disso, no entanto, beneficiou a massa de pobres e escravos de Cuba, cuja má sorte continuaria após a independência e a abolição da escravatura, nas décadas em que o país viveu sob orientação direta dos Estados Unidos.

Nesse tempo, Washington não só indicava candidatos a presidente, como pagava os salários dos primeiros mandatários de Cuba. Empresas americanas ditavam a economia e a máfia instalou uma sucursal em Havana, cujo marco era o luxuoso Hotel Rivera. Jogo e prostituição disseminaram-se, num ambiente de insensibilidade social e racismo contra a maioria crioula.

Acrescente-se a tudo isso a dura repressão policial do último presidente avalizado por Washington – Fulgêncio Batista – e se entenderá por que, há 55 anos, um punhado de jovens guerrilheiros conseguiu derrubar o governo e como Fidel Castro, atuando sobre o sentimento antiamericano e as marcas da discriminação social, pôde dar a guinada socialista, jogando dados no cenário da “guerra fria”.

Garantir habitação, ainda que precária, alimentação básica, educação e assistência médica ainda hoje é a visão do paraíso para quem não tem acesso a direitos essenciais. Por essa segurança mínima e fundamental, os homens podem até abrir mão (por algum tempo) de liberdades individuais, não raro tisnadas de vil egoísmo.

Mas está claro que hoje os cubanos querem mais do que o que lhes é dado.

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Jomar Morais é um jornalista completo: escreve bem e edita bem. Jomar nasceu em Natal, foi fazer carreira em São Paulo e, depois, retornou a Natal. Começou no jornalismo político, mas hoje está mais interessado nos assuntos ligados à espiritualidade.