Ministro do Meio Ambiente não aprende com erros e mantém proposta que ofende vítimas e o bom senso. Por Claudio Angelo

Atualizado em 29 de janeiro de 2019 às 11:06
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante encontro de trabalho em Brumadinho. Foto de Isac Nóbrega/Presidência da República

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO DIRETO DA CIÊNCIA

Tragédias tendem a despertar nos governos um surto de rigorismo. Leis são endurecidas, a fiscalização é ampliada, líderes políticos posam de preocupados e solidários. O efeito frequentemente dura até o assunto ser esquecido pela imprensa, mas às vezes mudanças importantes permanecem. Quando Dorothy Stang foi assassinada, em 2005, o governo Lula mandou o Exército ocupar a Transamazônica. A fiscalização na região nunca mais voltou ao nível anterior ao crime. Quando um tsunami em 2011 destruiu a usina nuclear de Fukushima, Angela Merkel aproveitou para decretar o fim dessas usinas na Alemanha. Quando a taxa de devastação na Amazônia atingiu 29 mil quilômetros quadrados, em 1995, FHC baixou limites do Código Florestal que vigoram até hoje.

É chocante, portanto, que as respostas do atual ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Novo-SP), ao desastre da Vale em Brumadinho tenham sido prometer uma afrouxada adicional na legislação ambiental e botar a culpa numa suposta ineficiência da fiscalização. Nas declarações que deu às rádios CBN e Eldorado e ao portal G1nesta segunda-feira (28), quando a maior parte dos corpos ainda não havia sido resgatada, Salles pouco fez para reconfortar os atingidos e seus familiares: acenou com facilidades ao setor produtivo e nenhuma disposição para reforçar os órgãos de controle ambiental, que operam no osso na União e nos Estados.

Autolicenciamento

Questionado sobre o licenciamento ambiental, o ministro chamou a legislação atual de “complexa e irracional” e disse, erroneamente, que ela foi criada pelos governos de esquerda (o licenciamento no Brasil é disciplinado por um monte de dispositivos e resoluções, alguns com décadas de idade). Afirmou que é preciso ter foco nos empreendimentos de alto e médio potencial de causar impacto e espezinhou a fiscalização: “Esse modelo gigantesco, mastrodôntico (sic) da fiscalização ambiental não funciona”, disse à CBN. E defendeu sua proposta de instituir o autolicenciamento a empreendimentos.

Perguntado sobre se isso não favoreceria tragédias como a de Brumadinho, sofismou: “Ao contrário. Flexibilização e automação é apenas para baixo impacto e baixo risco. Um exemplo: você vai fazer licenciamento para a pessoa plantar milho na sua fazenda e você destaca equipe de técnicos para fazer licenciamento disso. Qual é a lógica? (…) Hoje você está destacando o mesmo funcionário que iria cuidar da barragem para cuidar da plantação de milho. É um contrassenso”.

A linha argumentativa é a mesma que usou quando assumiu o ministério e culpou o Ibama pelo aumento do desmatamento em 2018: responsabilizar pelos malfeitos uma suposta ineficiência da fiscalização e tirar o foco dos verdadeiros responsáveis pelos malfeitos, o setor produtivo. É um sofisma porque os órgãos ambientais federal e estaduais não têm pessoal nem para a barragem, nem para o milho. A resposta correta seria aumentar o pessoal e aprimorar a fiscalização. A proposta do ministro aparentemente é diminuir a lei. Auxiliado pela extrema complexidade do tema e pelo fato de poucos jornalistas terem domínio do assunto para questioná-lo ao vivo, Salles pode se dar ao luxo de pontificar com frases (nem sempre) gramaticalmente corretas, mas que não fazem sentido nenhum.

Pauta ruralista

Jair Bolsonaro foi eleito com a promessa de campanha de “tirar o Estado do cangote de quem produz”, e uma das medidas para isso seria flexibilizar o licenciamento ambiental. No primeiro dia de expediente, o presidente baixou um decreto criando na Secretaria de Governo da Presidência da República uma secretaria de apoio ao licenciamento ambiental. A ela compete “instruir o processo de licenciamento ambiental dos empreendimentos qualificados no PPI [programa de parcerias de investimentos] para aprovação pela autoridade competente”. Até agora, essa atribuição era do Ibama. A medida cheira a institucionalização do fast-track para grandes obras proposto anos atrás pelo senador Romero Jucá (MDB-RR) e nunca aprovado como lei.

O ministro Salles, condenado na Justiça justamente por uma manobra para favorecer indústrias e mineradoras quando era secretário no governo paulista, recebeu con gusto do chefe a missão de acelerar o licenciamento. Em 14 de janeiro, reunido com empresários da construção civil, prometeu tornar o licenciamento mais célere e “colocar a livre iniciativa em situação de respeito”. Na antevéspera do desastre em Brumadinho, recebeu no gabinete o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), líder da bancada ruralista, que trazia uma extensa pauta de reivindicações do agro. Um dos principais pontos era a “articulação política para o projeto de lei de licenciamento ambiental (3.729/2004)”.

 

Projeto de lei

O PL em questão é a mais adiantada das várias iniciativas que tramitam no Congresso hoje para flexibilizar o licenciamento. Trata-se do substitutivo do então deputado Mauro Pereira (cuja versão mais recente foi relatada na Comissão de Constituição e Justiça pelo deputado Marcos Rogério, do DEM-RO), apelidado “licenciamento flex” pela permissividade que introduz no instituto do licenciamento ambiental.

O texto parte de um projeto escrito por representantes da CNI (Confederação Nacional da Indústria), com aportes da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e acolhido pelos ruralistas. A bancada ruralista tenta encaminhar o texto para votação no plenário após trair uma negociação de dois anos com o MMA (Ministério do Meio Ambiente). Hoje ele tramita em regime de urgência em duas comissões da Câmara (CCJ e Comissão de Finanças e Tributação).

O MMA, então chefiado pelo deputado Sarney Filho (PV-MA), havia elaborado uma proposta de lei geral de licenciamento que estabelecia graus diferentes de rigor conforme o tamanho do empreendimento, o local em que ele está e seu potencial de degradação. A lógica é que um posto de gasolina na cidade de São Paulo não pode ter um licenciamento tão rigoroso quanto uma hidrelétrica na Amazônia ou uma barragem de rejeitos em Minas. A indústria e o agro não toparam: sua intenção é deixar a critério de cada Estado e município qual é o grau de rigor a ser aplicado ao licenciamento de cada obra. Além disso – e daí a referência de Salles ao milho na entrevista – os ruralistas querem isentar de licença a agropecuária extensiva.

Bombas na proposta

Além de deixar a decisão sobre que tipo de licenciamento aplicar a cargo de Estados e municípios (que quase nunca têm estrutura em seus órgãos ambientais e são presas muito mais fáceis de lobbies, como o da mineração) e de conceder uma série de isenções, o projeto de lei de licenciamento da Câmara contém outras bombas. É vago sobre a definição de área de influência do empreendimento e estabelece que “serviços de modernização e ampliação” de obras existentes estão dispensados de licença. Isso em tese permite pavimentar estradas na Amazônia com alto potencial de causar desmatamento sem necessidade de licenciamento. Para ficarmos em Brumadinho, se essa lei estivesse em vigor hoje, a Vale poderia ter aumentado o tamanho da barragem do Córrego do Feijão sem precisar pedir licença ambiental.

Salles não explicou em suas falas, nem foi perguntado, se concorda com a íntegra do projeto dos ruralistas ou se pretende apresentar um outro projeto de lei do Executivo ao Congresso. Dar foco aos empreendimentos de alto e médio impacto, como prometeu, parece sensato, só que a pergunta que ninguém fez ao ministro é: quem define o que é alto e médio impacto?

A única novidade que sinalizou querer inserir na legislação é um elemento tão controverso e tecnicamente frágil que nem a bancada ruralista fez questão de mantê-lo nas múltiplas versões do projeto ora na Câmara: o tal “autolicenciamento”. O próprio empreendedor concede a licença ambiental, jurando de dedinho que fez tudo certo. É caso de torcer para que seja apenas mais um factoide do ministro, cujo desconhecimento dos temas de sua pasta já o fez prometer comprar um sistema de satélite de R$ 100 milhões para fazer o trabalho que o Inpe faz hoje por uma fração desse valor.

Caso Salles esteja falando sério, e caso decida levar adiante a proposta de licenciamento ambiental colocada na mesa hoje, a coisa vai dar em lama.

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Claudio Angelo é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de “A espiral da morte: como a alterou a máquina do clima” (Companhia das Letras, 2016).