Mírian Dutra, FHC e eu. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 18 de agosto de 2016 às 9:05

 

Entrevistei Mírian Dutra algumas vezes, desde que ela decidiu abrir o seu baú de memórias. Muitos repórteres a procuraram, mas ela falou com três: uma jornalista da revista Brazil com Z (Espanha), Natuza Nery, da Folha de S.Paulo, e eu. Era também fonte de Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo.

As minhas reportagens falam por si, com as revelações que tiveram a devida repercussão e entendo que prescindem de qualquer esclarecimento.

Mas, em respeito aos leitores qualificados que questionam por que utilizei o celular de Mírian durante uma entrevista, dou algumas explicações.

Mírian me concedia entrevista espontaneamente, algumas vezes gravando, outras não, com o compromisso de que dessas entrevistas resultaria uma série de reportagens, um documentário e um livro.

A única condição colocada por mim é que o texto final caberia a mim, sem aprovação prévia dela e apenas com os fatos que eu considerasse de interesse público – nada de questões exclusivamente pessoais, como aborto, crises de namoro e outras questões do gênero.

Portanto, sendo entrevistas dadas espontaneamente, não havia motivo para desconfiar de Mírian. O jornalista não é um policial, não é inquisidor, é um interlocutor privilegiado, com procuração de seu público.

O jornalista não faz um inquérito ou dirige um reality show, captamos informação para contar a melhor história, com começo, meio e fim e dentro do quadrado da realidade factual, nem um centésimo de milímetro fora dele.

O jornalismo é muito mais arte do que ciência, e o importante, na relação com o entrevistado, é que o repórter demonstre credibilidade e conquiste a confiança de quem tem algo a dizer.

Uma vez obtida a informação, desde que não seja protegida pela solicitação de off, ela não pertence mais a quem a forneceu, mas a quem a obteve na condição de repórter.

Eu conversava com Mírian quando ela começou a contar coisas que julguei interessantes. Liguei a câmera do celular e comecei a gravar. Depois de vinte minutos, a memória acabou — eu tinha no celular outras gravações com ela ou sobre ela, realizada na Espanha, que somavam mais de uma hora.

Qual o recurso? Deixar para outro dia? Não. As pessoas mudam muito de um dia para outro, mudam muito de uma hora para outra. Decidi continuar com o celular dela. Mas poderia continuar sem nenhum celular.

No Jornalismo, mais importante é ouvir, gravando ou não, é saber como os fatos se deram e depois escolher a melhor forma de contar, seja reproduzindo o que ouviu, seja mostrando o que gravou, seja escrevendo ou relatando em vídeo suas impressões.

Truman Capote sequer anotava, para deixar a fonte mais à vontade e, num caso específico, do que captou escreveu uma obra-prima, “A Sangue Frio”.

Sei que, numa época em que as pessoas estão deformadas culturalmente pelo padrão reality show, histórias não importam muito, mas a imagem da história, desconsiderando que imagens podem ser facilmente manipuladas e, quando isso acontece, deixam de ser histórias que valem para a História, mas mentira que serve para o lixo, ainda que declarações estejam registradas em vídeo.

Muitas vezes, quando repórter de TV, pedi a cinegrafistas que aguardassem fora da sala, para que eu primeiramente conversasse com a fonte. Depois dessa conversa, com a fonte sabendo quem eu era e qual o meu propósito, o cinegrafista entrava e fazíamos um trabalho de qualidade, com o entrevistado muito mais à vontade.

Algumas vezes, o entrevistado não concordou em gravar, mesmo depois dessa conversa inicial, nem por isso o público ficou sem a informação que captei. Eu mesmo fui à frente da câmera e, num recurso que é conhecido como passagem, contei o que ouvi.

O que as pessoas que gritam “Cadê a gravação?”, desconsideram é que o fato de Mírian Dutra recuar de um trabalho, em que ela seria também autora, revela muito mais do caráter dela do que se eu tivesse realizado tudo com meu celular ou com um equipamento adquirido numa loja de material eletrônico.

De novo. Jornalismo é arte. E eu deixo o interlocutor muito mais à vontade utilizando um celular do que um equipamento formal, ainda que seja uma camerazinha da 25 de Março. Não fui lá exclusivamente para gravar imagens, mas para ouvir a história de Mírian, de preferência gravando, e esta história está bem contada, no documentário em vídeo e na série de reportagens.

Ao se recusar a me entregar a parte da gravação que ficou no celular dela, Mírian quis me proibir de utilizar o que estava arquivado no meu celular.

Sem negociação.

O público do DCM teve conhecimento de tudo o que conversei com ela, seja através do que ficou registrado no meu celular, seja através do relato que fiz.

Conheço o que as pessoas chamam “Padrão Globo de Jornalismo”, trabalhei lá, mas eu entendo que, acima do padrão, está o compromisso com o interesse público. Melhor com o “Padrão Globo”, mas ele não vale nada na mão de profissionais com orientações desonestas. Já o contrário pode ser ouro puro.

Posso não ter o registro da gravação, mas ninguém pode me impedir de contar tudo o que se passou, com um texto correto ou um relato honesto gravado em vídeo.

Por precaução, depois do episódio em Barcelona, troquei de celular, agora tenho um com o dobro de memória. Melhor se precaver…

Há duas semanas, quando captava informação para a reportagem sobre Celso Russomanno, gravei muitas entrevistas. Em uma delas, a memória acabou. Nem por isso deixei de fazer a reportagem. Será que vou ter que trocar de celular de novo?