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Moro, Dallagnol e a nova normalidade. Por Tânia Maria de Oliveira

Moro, Barroso e Dallagnol (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

No poema “No caminho com Mayakovsky”, muitas vezes confundido e atribuído erroneamente ao poeta russo, o autor Eduardo Alves da Costa descreve os passos de avanço autoritário e ausência de resistência, dos atos simples até que não seja mais possível resistir. Da retirada de flores do jardim a arrancar a voz da garganta, o inexorável é que, ao permitir que se vá adiante, não há o que fazer quando tudo se consuma.

Desde o último domingo, 09 de junho, quando os primeiros conteúdos de conversas entre o então juiz e hoje ministro Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol e demais procuradores da força tarefa da operação Lava Jato foram revelados pelo portal eletrônico The Intercept, muito já se debateu, se escreveu em artigos, reportagens e, sobremaneira, nas redes sociais.

Curiosamente, a disputa de narrativas não se deu entre mentira e verdade, uma vez que as personagens dos eventos cujos diálogos foram publicizados não negaram sua autenticidade, limitando-se a atacar a forma como foram obtidas e afirmando-se vítimas de hackers. Assumiram como legítimos os diálogos que disseram considerar normais, sem qualquer problema. E ao fazê-lo, indicavam adotar o comportamento que vem sendo legitimado desde que apareceram no cenário nacional.

É fato que condução coercitiva sem intimação prévia, delações premiadas com réus presos, usadas como prova sem nada que as corroborasse, vazamento de conteúdos de depoimentos e até mesmo de conversas privadas, prisão automática após julgamento em segunda instância sem trânsito em julgado, foram sendo praticados diuturnamente e, quando questionados judicialmente, foram mantidos. Desse modo, a Lava Jato vem praticando abusos há 5 anos como se normal fosse, sem reparos, impunemente. Seus membros, longe de serem questionados, eram ovacionados. E passaram a operar em uma lógica totalmente midiática, de olho na aprovação popular e nos holofotes, proferindo palestras, dando entrevistas e dialogando com as manifestações nas ruas. Enquanto isso, seus pares do sistema de justiça ignoraram as irresignações e questionamentos que lhes foram feitos, dentro e fora dos autos, e não foram poucos.

Não é nenhum absurdo dizer que os conteúdos revelados pelo portal The Intercept não surpreendem ninguém, mesmo que muitos afirmem seu espanto. A Lava Jato, que se em algum momento foi pensada para enfrentar a corrupção sistêmica, não captou as contradições em seu interior, tratando, desde sempre, a política como delito, e escolhendo atores a quem atingir de acordo com as preferências políticas de seus membros. Operou a utilização do sistema de justiça e especificamente do Poder Judiciário para atingir seus fins, maximizando objetivos particulares e não republicanos.

Igualmente, não é estranho que tanto o juiz Sérgio Moro quanto o procurador Deltan Dallagnol tenham respondido que o conteúdo divulgado são coisas “normais”. Na lógica lavatista de descumprir normas, princípios constitucionais e processuais legais, nada aconteceu de errado. De tal modo que o magistrado se portar como superior hierárquico do procurador, dando broncas, instruindo a busca de fontes, sugerindo investigações e inversão da ordem das etapas, antecipando decisões ainda não proferidas, em diálogos cotidianos é “normal”, as reuniões e os telefonemas cotidianos para discutir os casos – como mostram o inteiro teor das conversas – são normais. Grupos de procuradores interessados, não nos dados e rumos da investigação sobre as quais eram titulares, mas em fórmulas e métodos de como impedir uma entrevista autorizada pelo Supremo Tribunal Federal porque ela iria, em tese, ajudar o candidato com quem eles não simpatizam politicamente também são normais.

Nesse caminho da nova normalidade, encontram os membros da força tarefa da operação Lava Jato o amparo social e político dos que se apoiam no argumento fácil de que tudo fora feito para combater a corrupção, fundamento, a propósito, sempre o mais utilizado em todo o mundo no surgimento ou renascimento de regimes autoritários, como mote de fazer valer o desprezo pelos valores e instituições da democracia.

Em espectro amplo, essas posturas se alinham com a busca da naturalização do absurdo, que vai se impondo paulatinamente em nosso país. Exemplos não nos faltam, desde a exaltação à tortura e torturadores dentro do plenário da Câmara dos Deputados na votação do impeachment, até placa de rua quebrada com o nome de uma vereadora assassinada, ambos os atos sob aplausos de multidões. E a operação Lava Jato, é preciso reconhecer, virou uma operação famosa não apenas pelos seus números e seu discurso de combate à corrupção, mas por escancarar a seletividade do processo penal brasileiro, e o descumprimento comezinho de normas processuais, sem que jamais qualquer de seus membros, servidores públicos, respondessem por seus atos.

As garantias do processo penal são marcos civilizatórios. A realidade incontrastável de que o juiz e os procuradores da operação Lava Jato as desprezaram totalmente, atropelando-as, assume, a partir da revelação trazida, uma dimensão de que não mais cabem as vendas nos olhos de quem tem poder para recolocar as coisas em seu devido lugar. O The Intercept, que a propósito afirma que revelou 1% de todo o conteúdo de que dispõe, evidenciou a ausência de alternativas que indiquem “lixo para debaixo do tapete” como factíveis. Não se pode sustentar a normalidade de relações de conluio, diante de evidências sistematizadas. Não há explicação convincente capaz de modificar o degradante espectro que sustentou essa investigação e custou a liberdade de cidadãos e sua execração pública.

Da aberrante divulgação de grampos ilegais envolvendo a Presidenta da República à aceitação do cargo de ministro do governo a quem beneficiou nas eleições, retirando o adversário de cena, Sérgio Moro testou todos os limites, impunemente. Do bizarro Power Point da denúncia de Lula à fundação para gerir recurso públicos, Dallagnol perdeu as balizas de qualquer atuação comedida. Retiraram flores do jardim da legalidade, mataram o cão e invadiram a casa. Agora é preciso gritar enquanto ainda há voz na garganta, agir antes que seja tarde. Se não dissermos nada agora, é provável que logo não possamos mais dizer.

.x.x.x.

Tânia Maria de Oliveira é membro da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

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