“Moro deseja que militares possam agir com impunidade”, diz senador francês ao DCM. Por Willy Delvalle

Atualizado em 19 de abril de 2019 às 7:23
O senador francês Antoine com Willy Delvalle, do DCM

A ligação do senador francês Antoine Karam com o Brasil é de longa data. Os nomes de seus filhos são homenagens a esportistas brasileiros, Jair (referência ao futebolista Jairzinho) e Joaquim (como Joaquim Cruz).

Ele nasceu na Guiana Francesa, que detém a maior fronteira da França com o exterior. 750 km dividem-na do Amapá. Presidiu comissões bilaterais, participou de diversos projetos de cooperação e conhece a história brasileira. Foi sua especialidade durante a formação em História.

Sua vida política cruzou com personalidades como João Capiberibe, José Sarney e acolheu a presidenta Dilma Rousseff no Senado francês, depois do golpe que a destituiu. Apesar da postura diplomática, ele condena diversas declarações de Jair Bolsonaro.

O senador afirma que o presidente brasileiro “apoia assassinos”, numa referência aos militares autores de 80 disparos contra uma família no Rio de Janeiro. Diz que Moro “deseja que os militares possam agir com impunidade” e compara seu projeto anticrime a um faroeste.

Nesta entrevista ao DCM, Antoine Karam (Partido Socialista Guianês), ligado ao grupo do presidente Macron, critica a Operação Lava Jato, a prisão de Lula, fala da questão ambiental dos dois lados da fronteira e manda um recado a Bolsonaro caso o presidente queira entrar para a história.

Como é o para o senhor, que conhece tão bem o Brasil, vê-lo hoje fraturado sob um presidente como Bolsonaro?

Minha profissão, ser senador não é uma profissão, é uma função… Fui professor de história durante 40 anos. Especializei-me em História do Brasil quando era estudante. Fiz um TCC muito interessante sobre o secretário geral do Partido Comunista (PCB), que estava em exílio durante a II Guerra Mundial. Então, eu me interessei pela História do Brasil. Na universidade, eu fazia Civilização Brasileira. Explicava a relação entre Brasil e Europa, Brasil e Guiana.

O Brasil ganhou a guerra contra a França no final do século XIX sobre a fronteira. A França reivindicava uma parte do estado do Amapá. O Brasil reivindicava uma parte da Guiana. A França se saiu tão mal que a Guerra do Amapá, que celebramos todo ano na Guiana foi uma derrota para os militares franceses. Foi resolvida pelo Tribunal de Genebra, em 1901, em ganho de causa para o Brasil, que provocou um recuo da Guiana de 90.000 quilômetros quadrados na época. Então, não podemos nos desinteressar pela história do Brasil.

Eu me interesso pela história do Brasil sobretudo a partir de Vargas que foi um presidente “místico” do Brasil, retirado pelos militares. Depois de outros presidentes, os militares tomaram o poder até 1985. Sempre combati todo tipo de ditadura

porque penso que o poder deve ser democratizado. O Brasil é um país muito rico em diversidade, onde os povos se cruzam, dos povos autóctones até os que integraram o Brasil vindo de todas as partes, do Oriente Médio; da Ásia, do Japão; da Europa, da Alemanha, muitos alemães. Isso que faz a originalidade do Brasil, sua riqueza.

Quando olhamos para alguns brasileiros e vemos que têm nomes brasileiros e sobrenomes alemães, é a riqueza do Brasil. Eu me interesso (pelo estudo) da ditadura, da redemocratização e sua fragilidade até a chegada de Jair Bolsonaro. Estou espantado com o percurso de Jair Bolsonaro, pela maneira como as coisas aconteceram antes que ele chegasse ao poder nesses três últimos anos.

Não digo que não há corrupção no Brasil, não inocento aqueles de esquerda ou de direita que se envolveram nesses casos, porque isso faz parte de uma cultura opaca ver dirigentes políticos se envolverem nesses escândalos e em assassinatos políticos, que sempre houve no Brasil, dirigentes presos e libertos. Nada nunca está conquistado no Brasil. Todo mundo pensou que a democracia estaria estabilizada por décadas, por muito tempo. Mas ninguém sabe hoje o que vai acontecer. Tenho um olhar atento, um pouco crítico, sou socialista e, diante de qualquer problema, eu coloco no centro a filosofia do homem, do humano. Ver qualquer tipo de sistema autoritário se apoiando sobre os militares me incomoda. Cada um tem que ficar no seu lugar.

Como o senhor reage à ordem de Bolsonaro para a comemoração do golpe de 1964?

É gravíssimo. Eu me revoltei com muitos amigos brasileiros que defendiam valores da democracia, da esquerda, que penderam para o campo de Jair Bolsonaro dizendo que era necessário combater a insegurança, a violência, rearmar os brasileiros, que era preciso alguém autoritário porque há muito tráfico de drogas, problemas que todas as sociedades do mundo enfrentam. Jair Bolsonaro não chegou do nada na política. Se olharmos para todo que no entorno de sua família, me incomoda. Combaterei sempre seus comportamentos extremos, extremistas, que não têm por natureza estabilizar um território.

É preciso que a democracia seja forte para impedir todo tipo de deriva. Estou preocupado com o futuro proximo do Brasil. Temo que as tensões possam tomar forma e levar o Brasil a uma tamanha tensão, mesmo que os militares juraram não intervir na vida política. Vi uma espetáculo aterrador no Parlamento de Macapá, uma briga de parlamentares, como se nós no hemiciclo, por não estar;os de acordo, pulássemos em cima do presidente do Senado e nós batêssemos. Pensei que essa página havia sido virada, que haviam dado as costas para esse tipo de

comportamento inaceitável numa democracia. Estou preocupado, espero me enganar.

Em visita ao Memorial do Holocausto em Jerusalém, Bolsonaro disse que o partido nazista era de esquerda porque se chamava Partido Nacional Socialista. Como o senhor vê esse tipo de declaração?

Nós visitamos, com uma delegação do Senado, o território palestino, Ramallah, estivemos em Tel Aviv e em Jerusalém, uma cidade extraordinária pela sua história. Ele é completamente pueril pelo fato de ignorar a História, ou faz de propósito. Acho que ele faz de propósito. Todo mundo conhece essa história do nacional-socialismo. Os dois termos foram juntados deliberadamente para criar uma confusão, mas todo sabe que Hitler se apoiou sobre forças liberais, sobre os ricos.

Hitler nunca esteve numa cultura socialista tal qual conhecemos, socialismo científico, como o do marxismo, o socialismo mais humano, dos reformistas e da social democracia. Bolsonaro cultiva um verbo limite para tomar o “espírito” dos fracos, que não conhecem a história da vida política no mundo, ou não se interessam por ela, que só reagem no plano emocional ou por instinto.

Foram tantos os comunistas mortos e torturados pelos nazistas, antes mesmo do extermínio dos judeus. Os comunistas e os socialistas foram os primeiros a serem presos na Alemanha. Muitos fugiram para não serem torturados ou assassinados. Não posso aceitar esse amálgama, que não é de natureza a mostrar que esse presidente da República (do Brasil) seja alguém correto e competente. Ele faz de propósito, de maneira desacreditada. Ele é tão obcecado por um antissocialismo, um anticomunismo primário, para se fazer diferente, o que é inaceitável.

O que significa para a imagem do Brasil que seu chefe de Estado apareça em Jerusalém visitando instituições sagradas do lado do chefe de Estado israelense?

Ele fez escolhas. Ele tem direito enquanto presidente de visitar todo território. Entendemos que ele tem um eixo hoje, com a América de Trump, a direita e a extrema direita de Israel. Ele está na antípoda de todos os que querem reconhecer o Estado Palestino, que querem viver em paz ao lado do Estado Israelense, o que a ONU deseja desde 1948. Ele faz o que quiser, mas combaterei sempre seus excessos de linguagem e seu vocabulário. Precisa-se respeitar justamente o povo palestino, que merece existir da mesma forma que os israelenses.

No entanto, ele diz que prioriza a Bíblia em relação a Israel…

Ele que diz isso. Já é uma mistura. Há a Bíblia, mas há também o Corão, há o livro sagrado dos judeus, há o mundo budista. Não fui eu que disse, foi Marx que falou que a religião é o ópio do povo. Tudo isso é feito para desestabilizar as opiniões no Brasil, cuja riqueza era na verdade a diversidade ideológica e política, para mostrar que ele é um homem forte. É um extremismo de direita, tudo que ele for desenvolver como ideia será de uma direita “musculosa”, forte, militarizada… Tenho certeza que se as coisas forem mal, ele apelará ao exército. Espero que o exército brasileiro ficará no seu lugar.

O senhor acredita que é isso que vai acontecer, que o Exército ficará no seu lugar?

Não tenho bola de cristal. Tudo é feito para criar tensões. E tudo pelo discurso. Por anos, Hitler desenvolveu um discurso “musculoso”, racista, antissemita. E a partir desse momento, ele impregnou as massas de seu discurso, e as preparou, até 1945. Espero que Bolsonaro não consiga convencer todos os brasileiros. Farei parte dos democratas que denunciarão sempre essas atitudes.

Por isso trabalho com todos os partidos fundamentalmente democráticos, que não aceitam elogios como os feitos hoje (à ditadura). Respeito a filosofia política de Bolsonaro. Ele chegou em determinadas condições ao poder; houve uma série de processos; pessoas foram presas; Lula foi preso em condições excepcionais; a destituição de Dilma Rousseff nas condições que você conhece…

O senador francês Antoine Karam

Que condições?

Ela foi destituída pelo Parlamento e se viu na rua. E o que a substituiu, o presidente interino, se encontrou em grandes dificuldades. Porque não há no Brasil pessoas que são puras e aquelas que são o contrário numa sociedade frágil por múltiplas razões. Hoje, Bolsonaro chegou ao poder com um discurso de segurança, prometendo limpar o país. Havia um candidato nos anos 1960 que se chamava Jânio Quadros que era o candidato da vassoura. Ele fez toda sua candidatura eleitoral na promessa de limpar a classe política. É um pouco isso hoje. Bolsonaro não tem a vassoura, mas tem o comportamento da vassoura.

Qual é o estado das relações entre a França e o Brasil hoje?

É preciso fazer essa pergunta ao presidente da República. Eu não ouvi dizer que o presidente (da França) fará visita oficial (ao Brasil) nos próximos dias. O último presidente francês que passou pelo Brasil foi Hollande (em 2016, para os Jogos Olímpicos). Bolsonaro foi eleito em novembro, assumiu em janeiro, então é prematuro dizer qual será a relação. Mas a França será obrigada a manter uma

relação com o Brasil. Ela tem seu primeiro território da União Europeia face o Mercosul, a Guiana.

Por que, na sua percepção, Bolsonaro cita geralmente a França quando quer citar casos de fracasso no mundo?

Eu acredito que ele tem vontade de se posicionar na corrente Trump. Quando olhamos para a relação entre a França e os Estados Unidos hoje, no mais alto nível das relações entre Estados há muita hipocrisia. Penso que Bolsonaro fez uma escolha. Eu, que conheço bem o Brasil, digo que os brasileiros sempre gostaram muito dos franceses.

O filósofo Auguste Comte, que está na bandeira brasileira, “ordem e progresso”, é venerado. No esporte, os franceses amam os brasileiros, o futebol brasileiro. Há muita amizade sincera entre o povo brasileiro e o povo francês. Na diplomacia (entre os dois países), houve momentos de boas relações e esfriamento. Na ditadura, não houve tensão, mas houve um esfriamento. Faz quatro meses que Bolsonaro está no poder, então é preciso esperar.

Qual é a sua percepção desses primeiros meses?

Eu não vivo no Brasil e me contento de ler o que acontece. Por enquanto, ele conforta os que o levaram ao poder e os que o rodeiam por discursos populistas, por comportamentos primários, que não engrandecem um país como o Brasil, que é uma das primeiras potências do comércio internacional. É um país mais do que emergente hoje, o mais poderoso da América do Sul, são 200 milhões de habitantes, com uma diversidade que tem, o Brasil cresceria com um presidente muito mais que esteja à altura das expectativas da população e que, no plano internacional, seja responsável. Não são os discursos populistas que favorecerão as a pacificação das relações no mundo. Pelo contrário.

Moro apresentou um projeto ao Parlamento que aumenta as possibilidades da polícia de matar. Parece-lhe racional?

Ele coloca em prática tudo que eles propuseram durante a campanha eleitoral. Então é a política de Bolsonaro. Sei que o Brasil é um país difícil, que tem muita insegurança. Nos bairros populares das grandes cidades, acho que junto com o México, têm as taxas de criminalidade mais altas do mundo. Mas é para suscitar esse tipo de comportamento? Senão vamos voltar para a época do faroeste, nos Estados Unidos, onde cada um podia fazer sua própria lei.

Num estado democrático de direito, os poderes são separados e ele disse que é preciso dar armas pra todo mundo. Se você não concordar com o seu vizinho um dia, então vai poder aparecer com um fuzil e assassiná-lo. Você não precisará se preocupar. Eu observo, repreendo, denuncio e não aceito. Enquanto cidadão do mundo, não posso aceitar o que está acontecendo. A razão virá logo e espero que Bolsonaro, caso queira entrar para a história, possa fazer um exame de consciência e talvez agir diferente e ser o presidente não de uma parte dos brasileiros, mas de todos os brasileiros.

A Guiana é apontada como um dos departamentos mais pobres da França. Por qual razão?

Porque é um território esquecido. Foi colonizada a partir do século XVI. A França tentou fazer da Guiana uma economia de povoamento. Houve fracassos sucessivos. O Centro Espacial foi instalado. Mas ao lado de tudo que o lançamento de satélites nos permite hoje em termos de comunicação, há disparidade, não há água potável a alguns quilômetros do Centro do Espacial, não há telefone ou eletricidade e a taxa de desemprego é duas vezes maior que na França metropolitana. Há uma imigração clandestina porque a imagem da Guiana que foi dada na América do Sul é que é a Europa. Então muitas pessoas vêm procurar a felicidade na Guiana e tentar obter ajudas sociais. Ela tenta existir de outro modo, é o combate que eu tento fazer no Senado, para que ela possa ser um valor agregado por suas qualidades excepcionais. Fazemos parte da Amazônia. Não pedimos

assistencialismo, não pedimos para nos subvencionarem. Pedimos para agirem diferente, o que o Sr. Macron chama de diferenciação. Para mim, a diferenciação é a autonomia. Eu não disse que é preciso haver a independência. Não estamos preparados. Não estamos prontos. Mas uma autonomia proporcional às nossas necessidades, às nossas expectativas, como dizia o general De Gaulle, nos anos 1960, e um campo de possibilidades de ter uma economia endógena, de poder implementar um sistema coerente, cooperar com seus vizinhos, de agir melhor em relação aos seus próprios interesses, pelos interesses da França e da Europa no continente sul-americano.

O que o senhor pensa da prisão de Lula?

Ele se envolveu em corrupção? Cabia ao juiz desvendar. A maneira precipitada com a qual ele foi preso, com a qual ele foi jogado na prisão, por muito tempo… me parece mais adequado o que na lei francesa chamamos de presunção de inocência. Tenho a impressão de que se você é preso no Brasil, você é imediatamente presumido de culpa. Eu não posso me pronunciar sobre a natureza do que ele é acusado, mas acho que a prisão poderia ter sido evitada. Uma parte da população brasileira apoia Lula, a outra parte pensa que o juiz tinha razão para prendê-lo. Mas se Lula está na prisão, então deveria haver dezenas e centenas de políticos e grandes empresários na prisão.

Michel Temer, por exemplo, foi preso e depois liberado.

Dois pesos, duas medidas. Tudo isso me decepciona bastante. O principal fundamental da justiça é sua independência. E tenho a impressão que o político no Brasil interfere demais no juiz.

Aceitar ser ministro da justiça prejudica a independência de poderes?

Absolutamente. Na França, você tem três poderes separados, o executivo, o legislativo e o judiciário. Os juízes franceses são muito ciosos de sua independência; isso incomoda os políticos, incomoda a opinião. Quando um juiz toma uma decisão é muito difícil ir na direção contrária.

A senadora Laurence Cohen qualificou de “fraca” a reação da França ao que está acontecendo no Brasil. O senhor concorda ou discorda?

Cada um faz como quiser. A França não pode fazer ingerência no Brasil. Na Iugoslávia, o direito de ingerência foi mobilizado para salvar a população. No lugar, eu teria outro discurso. Eu também não vou julgar de fraca ou forte a reação de um governo perante outro. Escutamos às vezes declarações bastante fortes do nosso executivo quando há fatos contrários ao funcionamento da democracia em certos países. Podemos pensar em certos países africanos, o caso do Sudão nos interpelou. Qual é a reação do governo francês em relação ao que acontece no Brasil? Penso que é preciso esperar um pouquinho mais. Ultrapassamos os 100 dias. Esperemos o primeiro ano para ver o que acontecera. Por enquanto, é prematuro denunciar o governo francês em relação ao que acontece no Brasil.

O que o populismo de extrema direita corre o risco de fazer no mundo hoje?

O populismo vive de momentos e depois desaparece. Eu confio na democracia. Confio na inteligência dos povos para não se deixar levar por discursos fortes, populistas, perigosos e repugnantes. Todos os populistas que chegaram ao poder não duraram muito tempo. Sou talvez otimista demais. O povo não aceitará mentiras e discursos perigosos que lhes conduzirão à destruição. Esperemos.

O que o senhor vê no futuro político da França e da Europa?

A França é um país de alternância. Mitterand passou 14 anos. Foi o presidente da quinta república que fez dois mandatos. Chirac não se candidatou à reeleição. Sarkozy e Hollande governaram por apenas um mandato cada. Quando a rua toma o controle, isso fragiliza a democracia. Isso pode ser popular num dado momento, mas se dura, pode conduzir sempre ao populismo e é perigoso. Defenderei sempre a democracia, mesmo que a democracia não seja perfeita e tenha muitos inconvenientes. Defenderei aquelas e aqueles que graças à lei permetem a uma lei e a um país de viver normalmente.

O senhor faz uma referência aos coletes amarelos?

Para mim, os coletes amarelos são um fenômeno pontual. Num dado momento, depois que protestamos, denunciamos, é preciso agir. Há duas soluções: ou você faz uma revolução, com todas as consequências, ou você se candidata às eleições e o povo faz sua escolha. Eu sou dessa posição.