Morrer pela Pátria e viver sem razão. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 9 de novembro de 2023 às 9:12
Militares durante os atos golpistas de 8 de janeiro. Foto: Reprodução

Um preocupante consenso de elites ronda a democracia brasileira: o de que as Forças Armadas nada tiveram a ver com a escalada golpista dos últimos quatro anos, cujo ponto culminante foi o terror de 8 de janeiro, em Brasília. Governo, Judiciário e a maioria do Legislativo irmanados com boa parte da mídia apressam-se em construir orações sem sujeito diante de um histórico de ordens do dia, acampamentos em frente a quartéis e participação de altos oficiais em articulações para desacreditar urnas, instituições e organizações da sociedade. Uma passação de pano ampla, geral e irrestrita busca convencer a opinião pública de que sem os fardados, a legalidade teria ido à breca.

Inúmeras vozes se insurgem contra esse acordão. Uma das mais qualificadas é a de Manuel Domingos Neto, no recém lançado O que fazer com o militar – Anotações para uma nova defesa nacional (Gabinete de Leitura, 224 págs., R$ 100). Professor aposentado da Universidade Federal do Ceará e ex-deputado federal, o autor apresenta uma espécie de síntese de quase meio século de pesquisas, incontáveis contatos com oficiais e refinada análise do passado recente. Não faz rodeios em seu raciocínio: “Escrevi este livro para os que acham possível apaziguar o quartel com atendimento às demandas corporativas. Lula acreditou nisso e foi preso. Voltou ao governo contingenciado pelo fuzil. Dilma também acreditou e perdeu o cargo”.

Capa do livro “O que fazer com o militar”. (Foto: Reprodução)

Para Domingos Neto, o problema essencial é o que chama de transtorno de personalidade funcional do militar. Toda a pregação dos comandos superiores exalta a defesa da soberania e de um difuso conceito de Pátria. Contudo, desde a independência, os soldados são majoritariamente treinados para outra atividade, o combate ao “inimigo interno”. Isso teria se concretizado na manutenção do sistema colonial-escravista, na repressão a movimentos separatistas no Império e a qualquer tipo de rebelião popular na República.

Na Guerra Fria, a partir de 1945, a missão foi embalada pelas teorias de contra-insurgência e no combate à chamada subversão. A partir daí o soldado se percebe como “político, policial, empresário, assistente social, administrador público, construtor de estradas, perfurador de poços no semiárido, guarda florestal, vigia de fronteira, entendido em Segurança Pública, controlador dos tráfegos aéreo, costeiro e fluvial, supremo avaliador da moralidade e planejador do destino nacional”, escreve o autor. Incapazes de desempenhar sua função essencial, a defesa contra a agressão externa, as Forças arrogaram-se o papel de interventoras frequentes na vida política.

Domingos Neto avalia que o Brasil possui um arremedo de Defesa. “Neste domínio, a República fracassou. Para a afirmação da soberania brasileira, precisamos de uma nova Defesa, que revise as funções, a organização e a cultura das Forças Armadas. Chamo essa revisão de reforma militar”, afirma.

A partir daí o livro esboça bases de uma profunda mudança na organização e nos objetivos da caserna. O passo inicial seria o rompimento das Forças com a grande indústria transnacional de armas e com os desígnios das potências hegemônicas.

A reforma proposta deveria rever o número excessivo de generais sem função e a distribuição das tropas pelo país, além de abrir caminho para que mulheres e negros tenham ascensão hierárquica. O trabalho exalta a necessidade de maior investimento estatal em ciência e tecnologia, para dotar o setor de capacidade operacional diante das novas características da guerra. Por fim, deve-se abrir um grande debate nacional sobre Defesa. Trata-se de articulação eminentemente política, que não pode se restringir aos muros da caserna. “Comandantes precisam ser consultados sobre a Defesa, mas a sua concepção e condução cabem ao político”, sublinha Domingos Neto.

Dois pontos buscam amarrar o conjunto de proposições feitas no livro. O primeiro é acabar com a ideia de que as Forças Armadas seriam um poder moderador, com capacidade de intervir na vida política do país, como estabelece o artigo 142 da Constituição. O segundo aponta para uma política abrangente de Defesa, que precisa incluir a coesão social e cidadã do país. Isso implicaria redução da pobreza e da desigualdade, de toda ordem de preconceitos e das disparidades regionais, além da consolidação do regime democrático.

O que fazer com o militar é obra de intervenção e quase um libelo pela mudança do lugar das Armas nas políticas de Estado. O apelo é enfático: “Hoje, os generais tentam administrar perdas e danos por seu envolvimento direto e indireto na baderna golpista. Lula persiste no apaziguamento: comemora o Dia do Exército, ritual enaltecedor da índole colonial da corporação e exalta o Exército de Caxias, expressão que legitima as intervenções domésticas da Força Terrestre”.

Tudo indica haver uma oportunidade histórica para se promover uma grande reestruturação nas forças de Defesa e segurança. O livro de Manuel Domingos Neto é um poderoso alerta de que essa oportunidade não dura para sempre.

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