Mourão terá ‘domínio da narrativa’ quando parar de mentir. Por Cláudio Angelo

Atualizado em 16 de setembro de 2020 às 9:05
General Hamilton Mourão. Foto: Reprodução/Twitter

Originalmente publicado por Direto da Ciência 

Por Cláudio Angelo

Prezado general Mourão,

Leio no Congresso em Foco que o senhor está preocupado por ter “perdido o domínio da narrativa” sobre a Amazônia. Segundo o senhor, três grupos teriam “dominado” a tal “narrativa”: a oposição a Bolsonaro, os nossos concorrentes econômicos e o cânc…, digo, os ambientalistas, com sua “paixão exacerbada”. A declaração contém tantas camadas de significado que demandaria quilômetros de análise para ser explicada a contento. Não é o caso aqui. Deixe-me apenas dar um conselho: se quer retomar o “domínio da narrativa”, um bom jeito de começar é parar de mentir.

Eu sei, é difícil depois de tanto tempo convivendo no coração do bolsonarismo. Mas vale a pena tentar, general. Se por mais nada, pela pátria. Estamos numa espiral de descrédito que será ruinosa para nossa economia. Na semana passada duas grandes redes de supermercados alemães pediram ao governo Merkel que pressione o Brasil para reduzir o desmatamento e as queimadas. Outros 40 varejistas europeus exigem uma resposta para continuar comprando nossas commodities. Os investidores seguem desconfiados do país – e desde a sua última conversa com eles as coisas só pioraram. E há um movimento crescente na Europa para cancelar o acordo comercial com o Mercosul. Veja bem: cancelar. Nem mesmo o Observatório do Clima, tido e havido como radical, defende acabar com o tratado.

General, pessoas que manejam trilhões de dólares em ativos não se informam pelo zapzap nem pelo YouTube do Olavo de Carvalho. Elas leem jornais. Conversam com especialistas. Elas entendem que, quando imagens de satélite e relatos de campo mostram desmatamento e queimadas acontecendo na Amazônia, é porque desmatamento e queimadas estão acontecendo na Amazônia. Cada vez que o senhor, o seu chefe e o menino da boiada dizem que não tem nada acontecendo elas ganham mais uma razão para duvidar do governo. E o nosso agronegócio fica mais próximo de amargar aquela palavra tenebrosa que começa com “boi” e termina não em “ada”, mas em “cote”.

Pare por um momento e pense em como o senhor tem reagido ao bafo quente das sanções comerciais no seu cangote. Na última semana, compartilhou um vídeo fraudulento dizendo que a Amazônia não está pegando fogo. O vídeo foi bancado por um empresário multado por trabalho escravo e contém pérolas como mico-leão-dourado na Amazônia (deve ter sido para agradar ao Fábio Faria, que disse que 87% da Amazônia é Mata Atlântica). Antes disso, declarou numa entrevista que faltou dinheiro para combater o desmatamento (falso: só o Ibama tem cerca de R$ 100 milhões em recursos financeiros do Fundo Amazônia e da Lava Jato que poderiam ser usados imediatamente), que o Inpe “se ressente de maior capacidade de análise” (falso: o Inpe já utiliza inclusive radar em áreas críticas da Amazônia, mas os alertas feitos pelo instituto não têm tido resposta da fiscalização) e que o país tem a necessidade inadiável de torrar R$ 145 milhões em imagens de radar porque quem as fornece hoje é o Japão e, sei lá, vai que a gente entra em guerra com eles de novo, né?

O senhor tem trombeteado a cascata pseudocientífica de que “90% das queimadas estão na área já humanizada (sic)” da Amazônia. Errado, general. Apenas olhe o mapa do dashboard amazônico da Nasa: cerca de metade das queimadas estão em áreas recém-desmatadas. É um escárnio com a comunidade científica nacional e uma ofensa à inteligência o fato de o governo ter o todo Inpe à disposição, com dezenas de cientistas e 45 anos de conhecimento acumulado sobre sensoriamento remoto da floresta, e escolher se informar por meio de um único técnico – um prestidigitador que tem ampla rejeição de seus pares. Negar a existência de queimadas causadas por eleitores de Jair Bolsonaro que derrubam a floresta embalados pelo discurso de Jair Bolsonaro não evitará um incêndio sequer. Nem manterá um dólar de investimento em empresas brasileiras.

O senhor também tem defendido o projeto que libera garimpo em terras indígenas, sob a argumentação falsa – e já desmentida pelos caciques mundurukus, por exemplo – de que esse é o desejo dos índios. O único efeito desse discurso é estimular quem invade terras indígenas para desmatar, garimpar e matar. Igualmente falsa é a alegação de que a tal “regularização fundiária” que o senhor tem defendido como a panaceia da Amazônia seja uma solução para a crise ambiental. Primeiramente, há que desconfiar da intenção, já que em todo o ano de 2019 o seu governo regularizou – literalmente – meia-dúzia de propriedades rurais (contra uma média anual de 3.900 nos últimos dez anos). Depois, o Brasil já reduziu o desmatamento em 83% sem necessidade de mexer na lei de terras. General, o senhor não precisa bater continência para grileiros. Como amazônida, sabe bem que tudo o que o crime ambiental precisa é de uma expectativa de anistia. E o PL da “regularização” dá isso de bandeja.

Outro esforço brutal que o senhor tem feito na direção errada é a tal Operação Verde Brasil 2. Suas tropas estão na Amazônia há quatro meses. E o número de queimadas aumentou nesse período. Como é que o senhor explica uma operação de R$ 60 milhões por mês, com crédito suplementar de R$ 410 milhões, dar zero resultado? Se a Verde Brasil 2 fosse uma empresa privada gerida pelo Paulo Guedes, já estaria todo mundo na rua, inclusive o comandante da operação – no caso, o senhor. Até agora, a única inovação da operação foi turvar a comunicação dos resultados, já que está tudo centralizado na Vice-Presidência e ações de agências diferentes em tempos distintos vêm sendo divulgadas como se fossem obra dos militares. Aqui há uma lição e um alerta importantes para o seu plano de “dominar” a “narrativa”: tente combinar com a Nasa, porque, se a ação militar seguir falhando, os satélites vão seguir notando.

Ou, alternativamente, pegue a grana da operação e use-a para recompor o quadro de agentes do Ibama e do ICMBio. Sim, nós sabemos que o presidente quer ver esses dois órgãos da “indústria da multa” na tal “ponta da praia”. Mas, com o desmatamento entrando no terceiro ano de descontrole, até o Bolsonaro já terá sido capaz de perceber que não se reduz devastação com o Ibama de castigo e sem fiscais. É estarrecedor, general, como o senhor tem se queixado últimos meses da escassez do quadro do Ibama como se recompô-lo fosse responsabilidade de alguma força sobrenatural e o senhor não fosse o vice-presidente da República.

Uma coisa que o Fabio Wajngarten deveria ter ensinado ao senhor é que não existe comunicação sem gestão por trás. A gestão ambiental do Brasil hoje funciona contra o meio ambiente. O desmatamento virou guerra cultural, mais um instrumento do regime para mobilizar suas bases. Não há comunicação que salve isso. Em vez de inventar mil maneiras diferentes de negar a realidade e inventar comunistas infiltrados no Inpe, seria muito mais simples resgatar as políticas de prevenção e controle do desmatamento do pisoteio da boiada e colocá-las para rodar. O melhor jeito de convencer as pessoas de que se está combatendo a destruição é combater a destruição.

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CLAUDIO ANGELO é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima (Companhia das Letras, 2016).