O presidente eleito Lula da Silva ainda não discursou na COP27 (Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas) mas a perspectiva de sua passagem já ganha ampla repercussão na imprensa internacional.
“Mudanças climáticas são oportunidade para Lula reconectar Brasil com o mundo depois da era Bolsonaro”, destaca nesta terça-feira o jornal El Mundo, um dos principais da Espanha.
“Assumirá a presidência do Brasil em janeiro e vai à cúpula do clima como convidado, onde impulsará medidas para proteger a Amazônia. Junto à Indonésia e a República Democrática do Congo, planeja criar uma ‘OPEP das selvas'”, relata Sebastian Fest, correspondente na América do Sul.
“Há um tema que não pode esperar, um assunto que está lhe servindo como ponta de lança para reconectar o país com um mundo para o qual deu as costas nos últimos quatro anos durante a era Bolsonaro: as mudanças climáticas.
“A política externa de Bolsonaro, em especial nos primeiros anos, se apoiou em teorias conspiratórias encarnadas por Ernesto Araújo, um homem alheio à diplomacia do Itamaraty, e colocou o Brasil em sucessivos problemas”, afirma.
“Em agosto de 2019, Bolsonaro zombou do aspecto físico de Brigitte Macron, hoje com 69 anos, 25 a mais que o chefe de Estado francês. Bolsonaro está casado com Michelle, 27 anos mais jovem”, lembra.
“Macron e Lula conversaram no dia seguinte às eleições e traçaram uma agenda conjunta. A cúpula de Sharm-el-Sheikh é vital para ambos. E o iminente presidente brasileiro tem grandes ambições: segundo o The Guardian, o Brasil planeja criar junto à Indonésia e à República Democrática do Congo uma “OPEP das selvas” com a intenção de protegê-las. Isto está vinculado, também, ao conceito de “divida ambiental” que os países do sul sinalizam que os industrializados do norte têm”.
“Estima-se que Brasil, Indonésia e a República Democrática do Congo concentram a metade das florestas tropicais primárias que restam no mundo. Lula estará no Egito como convidado, já que formalmente a representação do Brasil reside no governo atual. Mas todos os olhos estarão voltados para o ex e futuro presidente do Brasil, que aos 77 anos assumirá no que em alguns momentos se assemelha a uma armadilha, dado que os problemas que hoje afetam a décima-segunda economia do planeta”, analisa.
“País gigantesco, o quinto maior do planeta, o Brasil é dono de 5,6% do território mundial, faz fronteira com dez países ou territórios. Pode-se inclusive dizer que com a França ao norte, já que suas fronteiras chegam à Guiana Francesa, um departamento ultramarino do hexágono”, contextualiza.
“Essa posição geoestratégica do Brasil, mais o fato de contar com a Amazônia, obriga a primeira economia da América Latina a exercer um papel de primeiro nível no âmbito internacional. Durante a presidência Bolsonaro, que apelidou de ‘comunista’ qualquer homólogo que não concordasse com ele, não foi assim. O Brasil se ausentou, deixou de ser a voz potente que havia sido durante as presidências de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. Esse recuo, impregnado de conspiracionismo crônico, se acentuou com a saída de Trump da Casa Branca”, avalia.
“A situação na Amazônia será um dos temas centrais de seu governo porque a pressão dos Estados Unidos e da Europa para frear o desmonte da selva crescerá. E Lula o aproveitará“.
França
Além da Espanha, a imprensa francesa também destaca a centralidade do novo presidente no encontro do clima. “O brasileiro Lula é esperado como uma estrela na COP27”, mancheta nesta segunda-feira o Les Echos, principal jornal econômico do país.
“Diplomaticamente isolado durante o mandato do presidente de extrema direita e climatocético Jair Bolsonaro, o Brasil suscita uma nova esperança”, diz a repórter Virginie Jacoberger-Lavoué.
“O mandato de Jair Bolsonaro (2018-2022) foi, para o meio ambiente, foi sombrio. A cada ano, o desmatamento disparou, em torno de 75%, acumulando tristes recordes; mais de 38.000 km2 foram riscados do mapa”.
“Medidas concretas devem ser anunciadas na COP27, principalmente sobre a redução das emissões de gás do efeito estufa, que no ano passado cresceram 12%, um recorde desde 2005”, relata.
“O Brasil vai poder inclusive fazer valer a emergência das energias renováveis. Lula pretenderia até organizar em 2023 uma cúpula ‘verde’ sobre a Amazônia”.
“Bolsonaro deu muito poder ao agrobusiness (terras exploradas, agrotoxicos…) e reduziu, ou até eliminou, os orçamentos dedicados à gestão ambiental. Na Amazônia, mais terras foram tomadas pelos exploradores agrícolas, sob total impunidade; o garimpo ilegal proliferou. No seu primeiro discurso, Lula garantiu que visa ao ‘desmatamento zero’, mas a promessa será difícil de cumprir. Sua eleição ainda assim já é um ponto de inflexão. No dia seguinte à sua vitoria, a Noruega, um dos principais financiadores da floresta amazônica, restabeleceu suas doações quase 487 milhões de euros)”, pondera.
A reportagem do jornal parisiense afirma como bons os resultados do presidente Lula nos seus dois primeiros mandatos e relativiza os de sua sucessora.
“Durante dois mandatos consecutivos, num contexto econômico favorável, Lula havia reduzido o desmatamento em quase dois terços. A esquerda no poder, no entanto, não deixou apenas boas lembranças. Em 2012, durante a Rio +20, o Brasil apareceu como ‘mau aluno’, em recuo na proteção ao meio ambiente. O governo de Dilma Rousseff, que sucedeu ao Lula, havia permitido uma flexibilização do código florestal, favorecendo muito as ‘grandes obras de infraestrutura'”.
“Em termos de ecologia e pobreza, o Brasil recuou radicalmente sob o mandato Bolsonaro. A ecologia é a prioridade que o mundo espera, mas tirar o Brasil da insegurança alimentar (33 milhões de pessoas) não poderá ir para o segundo plano. Através da Amazônia, Lula quer atrair uma onda de capital estrangeiro. Defender uma ‘economia sustentável’ num pais tão fragilizado não será contudo uma equação fácil”, constata.
Portugal
“O Brasil está de volta”, diz Amanda Lima, da CNN em Portugal.
“Enquanto bolsonaristas estão ajoelhados rezando em frente aos quartéis militares e pedindo golpe, o presidente derrotado nas urnas está isolado e com pouca agenda de trabalho. Mas, o que mais importa para o Brasil neste momento não são os delírios golpistas dos eleitores radicais ou a natural falta de trabalho do atual presidente. É a transição de novo governo, que ocorre com projeção para o mundo”, analisa, em sua coluna desta segunda-feira.
“O presidente eleito foi convidado pelo próprio chefe de Estado egípcio e já contactado por uma série de líderes europeus e de outros países para encontros durante o evento. Muito diferente de Bolsonaro, que nem sequer comparecerá à conferência, assim como já fez em 2021”, contrapõe.
“A passagem por Portugal, onde reside a maior colônia de brasileiros na Europa, é uma aproximação importante entre os dois países. Sem contar o compromisso na COP, será a primeira visita internacional de Lula após a vitória eleitoral. Nos dois seus primeiros mandatos, o petista esteve em terras portuguesas seis vezes”.
“Nestes quase quatro anos de mandato, Bolsonaro nunca visitou Portugal. Uma justificativa poderia ser a pandemia de Covid-19, mas a questão não o impediu de privilegiar, por exemplo, visitas à ditaduras como os Emirados Árabes Unidos”, observa.
“Diplomaticamente, o líder brasileiro da extrema-direita também não ajudou nas relações entre Brasil e Portugal. Apesar das tentativas da diplomacia portuguesa, o governo brasileiro não aceitou o acordo de reciprocidade de vacinas contra a Covid-19, ao contrário de outras dezenas de países de fora da União Europeia (UE)”, aponta.
“Mas, se Bolsonaro não veio a Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa atravessou o Atlântico e fez o seu papel de estadista. No entanto, nem sempre os encontros correram bem, ou mesmo ocorreram. Em agosto de 2021, quando a preocupação com a pandemia ainda era central, a comitiva portuguesa, devidamente protegida com máscaras, foi recebida por Bolsonaro e sua equipe com aglomerações e sem uso da proteção facial. Na mesma viagem, o presidente português prestigiou a reinauguração do Museu Nacional da Língua Portuguesa, evento em que Bolsonaro deixou de participar para fazer mais aglomerações com apoiantes em ‘motociatas'”, enumera.
“Em outra viagem, realizada em julho deste ano a convite do próprio Bolsonaro, o presidente brasileiro simplesmente cancelou o encontro com Marcelo Rebelo de Sousa, marcado para ocorrer em Brasília. O motivo foi o chefe de estado luso ter uma agenda com Lula da Silva em São Paulo, em um gesto de falta de respeito pelo presidente do país irmão”, afirma.
“Felizmente, essa imagem de um Brasil retrógrado, isolado das grandes potências mundiais e alheio às discussões para o futuro do planeta, está prestes a se tornar passado. O Brasil está de volta. A responsabilidade, o desafio e a pressão são enormes, afinal, o mundo está com os olhos voltados para a nação brasileira, que pode ser grande e feliz de novo”, conclui.
Mudança
As analises da imprensa internacional são um testemunho da rápida mudança de imagem internacional do Brasil em curso. De vilão climático sob Bolsonaro, o pais volta a ser visto com esperança, sob Lula.