Na semana que passou, o procurador da República Ivan Cláudio Marx pediu a absolvição do ex-presidente Lula no caso Cerveró, alegando não serem verdadeiras as informações que haviam sido prestadas pelo então senador Delcídio do Amaral, que o acusara em delação.
Dias depois, foi a vez do Procurador Geral da República Rodrigo Janot ameaçar retirar a imunidade de Joesley Batista, em face de uma conversa recuperada, que demonstraria supostos crimes que o magnata da carne deixou de mencionar no acordo que haviam fechado.
O Ministério Público, enfim, está começando a considerar o que já era para lá de intuitivo, e muitas vezes explicitamente ignorado: os delatores mentem e omitem. Para salvar a sua pele ou entregar a de quem lhe convém.
O episódio do áudio de Joesley é mais constrangedor quando os detalhes começaram a vir à tona. Diferentemente do anunciado solenemente por Rodrigo Janot, como gravíssima acusação que resvalava inclusive em ministros do STF, o aúdio é um grotesco exercício de vaidade, um desfile de grosserias e de maquinações de botequim. O único fato realmente delicado da conversa gravada envolve a suspeita de que o ex-braço direito do próprio Janot na Operação Lava Jato teria trabalhado dos dois lados do balcão durante importantes delações antes de mudar oficialmente de lado.
O timing de sua apresentação também despertou controvérsias, já que peritos esclareceram ter advertido há mais de três meses que havia uma conversa, que ainda podia ser recuperada no gravador entregue à PF. Mas ela só veio à luz, e com o estardalhaço que supostamente envolvia o STF nos derradeiros dias do mandato de Janot, também ocupados para a desova de denúncias contra as cúpulas de PT e PMDB.
Tratar investigação com timing político é jogar para o campo da conveniência e da oportunidade, o mesmo, aliás, que a entronização da figura do delator nos convida. A agenda deixa de ser elaborada estritamente pelo interesse público.
Prisões preventivas decretadas como estímulos à delação, trocas de advogados por exigência do órgão de acusação, fixação de cumprimento de penas em desacordo com as balizas legais.
O jogo de mentira, omissão e manipulação das delações não é um desvio isolado neste trajeto. Na república dos delatores, impera a ética do utilitarismo.
Tudo é possível, inclusive a impunidade ampla, geral e irrestrita oferecida aos irmãos Batista, desde que o objetivo seja, ao final, recompensador, sob a exclusiva ótica do Ministério Público.
A construção de um edifício investigatório sobre balizas tão inseguras, que variam do humor do delator ao cálculo de suas expectativas jurídicas, não é impune. Somos condenados a esperar de um escroque que denuncie outro e acreditar nas pessoas que, em distintas circunstâncias, não receberiam do sistema a menor credibilidade.
Para o processo penal, a arquitetura da colaboração premiada (cujo principal alicerce, aliás, foi editado no governo Dilma Roussef), juntamente com outros instrumentos de negociação criminal, como o acordo de leniência e a transação penal, estão mudando o epicentro do poder do sistema, do Judiciário para o Ministério Público.
A audiência não é mais o local privilegiado em que as provas se produzem e o processo é efetivamente disputado. Isso agora se decide, sobretudo, nos gabinetes do MP. Igualmente as penas são frutos das longas negociações. A função do juiz é quase apenas homologatória –salvo, evidentemente, quando ele se imiscui na tarefa de outros, como, por exemplo, na investigação.
Verdade que a importação do arranjo negocial do processo não desrespeitou nem mesmo nosso legado autoritário. A ideia de forçar a “colaboração” na investigação já foi praxe em porões nos anos de chumbo e em repartições comuns de delegacias de polícia após a redemocratização. A nova técnica pressupõe uma díade da qual o investigado-testemunha raramente escapa sem aparas: quem não presta colaboração está a meio caminho da obstrução.
O engrandecimento do MP norte-americano (de onde, efetivamente, tais institutos estão sendo importados), os transformou nos “agentes mais poderosos do sistema penal”, segundo Angela Davis. Longe de ser uma homenagem, esclarece que isso significa que diminui o controle e aumenta o arbítrio [1]. Não há quem tutele o conteúdo das propostas de plea bargaing nem mesmo a oportunidade e o prazo em fazê-las. Nos Estados Unidos, isso tem resultado em uma grosseira seletividade, especialmente racial, como explica Davis em Arbitrary Justice: The Power of the American Prosecutor.
Nada indica que erigido o modelo aqui seja algo diferente.
Há um mês mais ou menos, o jornal O Estado de S. Paulo noticiou que Marcos Valério, condenado e preso no Mensalão se ofereceu para fazer delação premiada, em busca de uma redução de sua pena. O que tinha para oferecer eram informações sobre o mensalão mineiro (ou tucano). O Ministério Público não só não se interessou como cerrou fileiras contra a disposição da Polícia Federal de fazer o acordo por sua própria conta.
Não deixa de ser estimulante perceber que com as delações, muitos podres que poderiam estar escondidos vem à tona. Entre Odebrecht e JBS, há um sem-número de parlamentares que teriam sido citados nas delações: da entourage petista a seu maior opositor Aécio Neves, e outros tantos peemedebistas, entre os quais os financiadores de movimentos soi-disant apartidários, como o Movimento Brasil Livre.
Mas a ética das delações tem dessas coisas: o acusador não sabe, enfim, se os elementos que dão sustentação a seu libelo não padecem dos mesmos males daqueles que busca combater.
Recentemente, o próprio juiz Sérgio Moro viu-se na obrigação de desdenhar a palavra de um acusado foragido, que teria assacado contra um amigo seu. Em circunstâncias normais, quem discordaria que dar ares de veracidade a palavras de quem vem sendo judicialmente desqualificado é um equívoco? Mas sendo esta a matéria-prima fundamental da delação, joio e trigo podem permanecer mais inseparáveis do que se pretendia.
É bom notar que um sistema verdadeiramente acusatório, como o dos Estados Unidos, impõe, sobretudo, esvaziar a mais problemática das atribuições do juiz, a participação direta na produção de provas, tanto mais ainda no inquérito. O juiz deve deixar de secundar a acusação, ser impedido de decretar prisões de ofício e de condenar quando a acusação pleiteia absolvição. O Ministério Público, a seu turno, deve se desvestir da função cumulativa de fiscal da lei, que supostamente o legitima a estar sentado ao lado do juiz (como se fossem um só corpo) e a ter palavras em todas as apelações após a manifestação das partes.
E, sobretudo, uma rigorosa fiscalização da legalidade da prova pelo magistrado, talvez o papel mais importante atribuído ao juiz, quando o veredito está ao encargo dos jurados.
Pois é justamente esse poder que as malfadadas “10 Medidas” (que não eram dez, nem contra a corrupção) pretendiam esvaziar: validar provas ilícitas e tornar mais difícil a decretação de nulidades pelos tribunais, como se seguir a lei fosse um preocupante obstáculo. Sua proposta, enfim, era o de uma espécie de sistema acusatório em que todas as partes agissem como acusadores…
Há mais em jogo do que a queda e braço entre o Procurador Geral e o presidente da República; ou uma luta estilizada entre o juiz do processo e seu réu ex-presidente.
Construir um processo penal eficaz que não perca seu caráter de garantia é a única chance de defesa contra o estado policial que se avizinha. Nenhuma tropa de elite vai fazer mais por nossa democracia.
Texto originalmente publicado no site Justificando.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.