Na São Paulo parada debaixo d’água, as imagens do abandono de sempre. Por Ricardo Kotscho

Atualizado em 10 de fevereiro de 2020 às 18:42

Publicado originalmente no Blog do autor:

POR RICARDO KOTSCHO

Passei a manhã desta segunda-feira vendo os estragos da chuva em São Paulo pela televisão e me deu a impressão de já ter visto muitas vezes este mesmo filme.

Em textos e imagens, nada muda de uma enchente para outra: foi a maior chuva dos últimos não sei quantos anos, choveu tantos milímetros em tal lugar, as pessoas deixaram as casas e perderam o pouco que tinham, as marginais intransitáveis com xis quilômetros de congestionamentos, ninguém consegue entrar ou sair da cidade, a defesa civil está de prontidão, os resgates são feitos pelos bombeiros, os desabamentos se sucedem, as pessoas não conseguem chegar à escola ou ao trabalho.

Sim, a São Paulo, que não pode parar, parou mais uma vez.

Em viagem a Dubai, o governador João Doria pediu para as pessoas não saírem de casa, e só. Foi sua única providência, como se fosse necessária.

Se não tivesse deixado a prefeitura para se candidatar a governador, ele estaria agora cumprindo o último ano do seu mandato, tarefa que deixou para o vice Bruno Covas, que está se tratando de um câncer e tem dificuldade até para falar pelo telefone.

Desde que cobri minha primeira enchente, uns 50 anos atrás, muitos governantes de todos os partidos já passaram por São Paulo, mas o sentimento dos moradores continua o mesmo: o de absoluta orfandade diante das intempéries.

Culpar as autoridades e cobrar providências, as famosas “obras contra enchentes”, é tão inútil quanto pedir para ninguém mais fazer suas moradias em áreas de risco, nas encostas dos morros ou na beira dos córregos.

Por mais obras que os prefeitos façam, canalizando córregos e limpando rios ou fazendo piscinões, cada vez que a chuva aperta, as mesmas cenas de desespero se repetem.

Por mais que limpem os bueiros, mais eles ficam entupidos de entulho, despejado pela cidade que não para de crescer para as bordas e para o alto.

Gostamos de repetir que São Paulo é a maior cidade do Brasil, mas não queremos reconhecer que aqui também se torna cada vez mais escandalosa a desigualdade social, onde convivem a extrema riqueza e a extrema pobreza, lado a lado, como vemos no Morumbi.

Quando acontecem as tragédias, isto fica ainda mais dramático, porque os pobres são sempre as maiores vítimas nos bairros que se multiplicam pelas periferias, onde o Estado é mais ausente.

As pessoas não moram lá por boniteza, mas é que não têm outro lugar para guardar seus filhos e seus trapos e montar uma cama. A opção é ir morar nas calçadas ou sob os viadutos, de onde são enxotados todas as manhãs.

Para ilustrar como nada muda de uma enchente para outra, recorro a um trecho da reportagem que escrevi em 1983, na primeira página da Folha, reproduzida no meu livro “A Prática da Reportagem” (Editora Ática, 2005, que já está na 4ª edição e 6ª reimpressão).

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“As marginais alagadas, o caos em toda a cidade, da Praça da Sé à extrema periferia, caminhões do Corpo de Bombeiros andando na contramão, o histérico e inútil barulho das sirenes por toda parte, gente ilhada, carros boiando, o entulho tomando conta das calçadas, e o prefeito Antônio Salim Curiati desaparecido desde as 11 horas da manhã.

Nenhum guarda de transito, nenhum lixeiro, nenhum assistente social para recolher os mendigos jogados sob os viadutos _ o centro da cidade lembrava uma praça de guerra entregue aos derrotados, seus habitantes.

Na velha São João, as filas avançam para o meio da avenida, mas os ônibus não chegam, presos em algum lugar desta cidade onde os córregos transbordaram, as bocas-de-lobo entupiram, os semáforos enlouqueceram e carros foram simplesmente abandonados por seus donos.

Úmidos, molhados, humilhados, os habitantes da outrora cidade orgulhosa viram-se jogados na vala comum dos moradores de uma vilazinha qualquer”.

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Não é maldade da natureza, não é culpa de São Pedro: nós, paulistanos, é que até hoje não aprendemos a conviver civilizadamente na terra onde nascemos.

Construímos grandes prédios e mansões, avenidas e cebolões, asfaltamos e concretamos tudo, e hoje vivemos enjaulados na nossa própria mania de grandeza, desfilando pelas ruas fantásticos carrões que ficam imobilizados, mesmo quando não chove tanto, porque já não cabem nas ruas.

Quem elege nossos governantes somos nós mesmos, e depois não adianta reclamar deles, porque ninguém, nem Jesus Cristo, será capaz de consertar tantos erros acumulados ao longo destes  anos todos em que São Paulo virou uma cidade hostil para os seus próprios moradores.

Viramos uma terra de egoístas, de gente que não respeita os outros, quer levar vantagem em tudo, finge que não vê a miséria batendo à sua porta e só sabe reclamar do garção, do guarda ou da faxineira.

Reduziram tudo a números e lucros na Bolsa de Valores, com manias de grandeza em meio à pobreza, pensam que são americanos ou europeus, mas não passam de borra-bostas que elegem um capitão do mato para cuidar do país.

Basta cair uma chuva mais forte para caírem na real. Ou não. Na cidade parada, todos são iguais, nada valem.

E vida que segue.