Não é papel da Justiça criar regras sem qualquer compromisso com a Constituição. Por Sérgio Ferraz

Atualizado em 26 de abril de 2018 às 23:04

Publicado originalmente no Consultor Jurídico (ConJur)

POR SÉRGIO FERRAZ, advogado, professor titular aposentado da UFRJ e da PUC-Rio 

Sessão do STF que vai discutir e votar o HC do ex-presidente Lula. Foto Lula Marques/Liderança do PT na câmara

Ainda recentemente, escrevi, para uma obra coletiva (coordenada e co-escrita — dentre outros autores — pelas figuras destacadas de Ives Gandra, Renato Nalini e Gabriel Chalita), uma apreciação crítica sobre o fenômeno denominado ativismo judicial (ou, também, consequencialismo judicial). Não obstante tal iniciativa, a matéria é tão importante, suas incidências concretas se multiplicando quase diariamente, que suponho conveniente antecipar um tanto do que ali lancei.

O ativismo ou consequencialismo traduz uma tendência judicial (sobretudo do Supremo Tribunal Federal), iniciada a partir da Constituição de 1988 e robustecida pela nova composição do Supremo, consistente em recorrer, para decidir, mais aos princípios que aos textos constitucionais. Só que a natural abstração extrema do conteúdo dos princípios, aliada à amplitude dos campos materiais de sua aplicabilidade, acarreta uma consequência indesejável: pela impossibilidade de se dispor de marcos semânticos nítidos, o princípio diz aquilo que o julgador prefere que ele signifique, variando assim seu preenchimento tal qual uma biruta soprada por ventos de rumos conflitantes.

No dia a dia do Supremo (mas também do Judiciário como um todo), essa corrente “pós-positivista” (pouco importa o que isso seja precisamente) e “neoconstitucionalista” (idem), com a pretensão de ter criado uma nova técnica de hermenêutica da Constituição, findou por “consequencializar” dois desastres: abriu, no seio da corte, uma cisão profunda, traduzida em múltiplas decisões por 6 votos a 5, ora num sentido, ora noutro, banalizando-se, no debate de ideias, a troca de insultos!; consolidou-se, na comunidade dos operadores do Direito, a convicção de que o Supremo é uma loteria, na qual a segurança jurídica se desmancha e qualquer julgamento é possível. O que é pior: desses julgamentos saem, sem legitimação constitucional ou devido processo legal de criação normativa, regras endereçadas ao Executivo, ao Legislativo, à nação (exemplos? Proibições de doações eleitorais, condições administrativas para demarcação de áreas indígenas etc.).

Veja-se, para sublinhar tal diagnóstico, o que se deu na sessão plenária do Supremo do último dia 19: o tribunal decidiu que o cabimento de embargos infringentes a decisão de suas turmas está condicionado ao registro de dois votos divergentes. Ora, trata-se de regra de processo civil, cuja edição normativa refoge à competência do Supremo e que, aliás, sequer consta do Regimento Interno da corte.

Esse ativismo injustificado, além de corroer o apreço que o Supremo sempre mereceu (além de ensejar atritos que a liturgia do cargo não deveria permitir), gera no jurisdicionado insegurança jurídica, de proporções danosas institucionais ainda de difícil, mas certamente muito negativa, quantificação. Interpretar com generosidade e visão sistemática, sim. Criar regras gerais, sem qualquer compromisso com o texto, só pensando com máxima subjetividade individual no contexto, não — esse não é o papel do Judiciário.