Não foi na ciclovia: como a lógica e a verdade foram atropeladas sob o Minhocão. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 24 de agosto de 2015 às 11:51
A ciclovia sob o Minhocão
A ciclovia sob o Minhocão

 

Após uma perícia, a Polícia Civil de São Paulo confirmou que o zelador Florisvaldo Carvalho Rocha, de 78 anos, morreu no corredor de ônibus sob o Elevado Costa e Silva.

Essa era a versão do administrador Gilmar Raimundo de Alencar, que atropelou Florisvaldo com sua bicicleta. “Se eu cometi alguma conduta incorreta, preciso assumir a responsabilidade”, disse Gilmar.

A tragédia suscitou um debate histérico, surreal e oportunista.

Há três dias, antes de qualquer laudo, antes de qualquer prova, os suspeitos de sempre cravaram que o acidente aconteceu na ciclovia — e que o assassino, por extensão, era o prefeito obcecado com elas, Fernando Haddad.

Na Jovem Pan, o historiador Marco Antonio Villa achou um genial neologismo: “ciclomortes”. Villa discursou que “um senhor estava atravessando na faixa intermediária, que antigamente era só uma calçada, hoje é calçada e ciclovia, acabou sendo atropelado e veio a falecer”.

É uma “contabilidade macabra”, definiu. “Quem é o responsável? O prefeito”.

Para o delegado Lupércio Dimov, que estava tocando o caso, “a prefeitura tem que se preocupar com campanhas educativas, não impor as coisas, colocar uma ciclovia e pronto”.

Como fica esse pessoal agora que se sabe que Florisvaldo não morreu na ciclovia? Alguém vai se retratar pela torcida para que o pior acontecesse?

Um relatório divulgado pela CET em maio aponta que houve 538 óbitos por atropelamento em 2014. A bicicleta aparece com duas ocorrências e os carros com 200. Duzentas.

Há uma questão aí: o paulistano a pé é um pária, um coitado. Mas, se você quer mesmo protegê-lo, o vilão da história é o automóvel. Nos últimos 50 anos, ninguém nunca reclamou de uma avenida, um viaduto ou uma marginal, mal ou bem planejados. Ser esmagado por um Honda Civic está dentro do script.

Gente como Villa e Datena dá uma contribuição enorme para atirar o nível do debate sobre mobilidade urbana no lixo, enfiando burrice, desinformação e ódio goela abaixo de seu público.

São Paulo é o lugar onde a lógica e a chance de uma conversa civilizada sobre o trânsito são atropeladas todos os dias pelos mesmos irresponsáveis.