“Não gosto que me usem como caso de superação. Jamais vou superar”, diz sobrevivente da Kiss. Por Donato

Atualizado em 27 de janeiro de 2020 às 8:40
Kelen Ferreira. Foto: Derli Soares

A voz falha e às vezes é interrompida por uma respiração profunda para retomar o fôlego. Mas não é sempre assim. “Piora conforme o clima”, afirma Kelen Ferreira.

Ela é uma das sobreviventes do incêndio na boate Kiss, ocorrido em Santa Maria (RS).

Kelen teve 18% do corpo queimado (os dois braços inteiros) e precisou amputar parte da perna direita. Até hoje faz uso de “duas bombinhas” e toma medicamento diariamente para os pulmões afetados pela inalação de fumaça.

A tragédia que deixou 242 mortos e quase 700 feridos completa 7 anos hoje, 27 de janeiro.

Com 26 anos, formada em Terapia Ocupacional, Kelen trabalha na ala de reabilitação de pacientes do Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas.

É lá que ela organizou a campanha Janeiro Branco – Sobreviventes da Kiss, vinculada à campanha nacional de mesma cor dedicada à Saúde Mental, pois a tragédia não deixa apenas marcas físicas.

São fotos e vídeos com depoimentos de alguns dos sobreviventes, retratando a busca  pelo equilíbrio entre o emocional, físico e mental.

Kelen não gosta de falar sobre o processo penal. Tem receio de ser processada. E, por incrível que pareça, ela tem razão.

Pais e familiares já foram processados pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul por exigirem rapidez e justiça. Recentemente, o advogado de um dos réus também culpou as vítimas pela demora caso haja recurso e transferência de julgamento para Porto Alegre. Dá para acreditar?

O julgamento dos quatro réus está previsto para este ano o julgamento.

Kelen conversou com o DCM.

DCM: Como se sente hoje quando fala do assunto?

Kelen: Janeiro é o pior mês. Revivo tudo que aconteceu 7 anos atrás. Mas tenho que falar para que não seja esquecido, para que não se repita e para que todo o Brasil veja como estamos após todos esses anos. Coração dói em saber que perdemos tantas pessoas, mas preciso lutar para que não seja esquecido.

Como tem sido a vida desde aquele janeiro de 2013?

Aprendendo a ser resiliente todos os dias. Não gosto que me usem como exemplo de superação, pois jamais vou superar. Eu aprendo a aceitar todos os dias.

Você voltou a frequentar casas de shows?

A primeira vez que sai foi para um congresso, em outubro de 2013. Achei que aconteceria tudo novamente. Olhava para o teto, para a porta de saída. Após isso fui me acostumando e hoje saio tranquilamente.

Quanto tempo ficou internada?

Foram 78 dias. Fui a primeira a ser transferida do Hospital de Caridade de Santa Maria para Porto Alegre (HCPA) e só recebi alta no dia 15 de abril de 2013.

Quantos amigos perdeu naquela noite?

Perdi três amigas: Cristiane Rosa, Juliana Oliveira, Laureane Salapata.

Você hoje trabalha como terapeuta ocupacional. Qual a ração dos pacientes quando a veem?

No início a reação era bem comovente e curiosa. Sempre perguntavam o que que tinha acontecido comigo, como eu tinha queimado as mãos. Quando eu acabava contando que era uma das sobreviventes do incêndio da boate Kiss, que eu tinha queimado os braços, amputado o pé direito, eles choravam, se comoviam, contavam para outros pacientes e familiares. Falavam que nunca imaginavam que iriam conhecer alguém que sobreviveu a um incêndio daquela dimensão.

Como faz uso de sua experiência como paciente em seu trabalho de atendimento?

Acredito que por ter ficado muito tempo internada, por ter uma profissão que exige bastante cuidado com os pacientes, aprendi a ver o paciente de uma forma mais humana. Ele não é somente um corpo. Tratar com carinho, atenção, humanidade, entre outras coisas, pois ele é o amor de alguém. Tem uma família esperando por ele em casa.

Você já cursava para essa profissão? Acredita em destino?

Eu já cursava terapia ocupacional, estava no terceiro semestre de faculdade. Continuei cursando após o incêndio e acredito muito em destino porque nada na minha vida até hoje foi por acaso. Eu já tinha prestado um vestibular anterior e na época e não passei para educação física. Conheci a terapia ocupacional depois disso. Gostei muito da descrição do curso, de como eu poderia atuar após formada. Depois tudo foi se encaixando. Acredito muito que sempre foram os planos de Deus para mim.

O que pensa sobre o lento e até aqui inconcluso processo na justiça sobre o incêndio?

Sabemos que na Justiça brasileira tudo é demorado. Esse será o ano do julgamento. Confesso que acompanho algumas coisas, outras não. Procuro ler quando saem notícias, ou ver na televisão sempre que posso. No início eu me revoltava muito, mas há alguns anos, quando comecei o processo de aceitação, entreguei nas mãos de Deus. Peço que ele me dê saúde para poder retribuir toda essa aceitação com dedicação no meu trabalho e que eu tenha cada vez mais resiliência para enfrentar o dia a dia.

Sinceramente, não gosto muito de falar nisso, mas acredito que os envolvidos nem dormir conseguem. Imagine você deitar a cabeça no travesseiro e saber que matou 242 pessoas e feriu mais de 700. Claro que ninguém tinha esse intuito e muitos outros réus deveriam estar sentados para o julgamento que acontecerá em breve. Mas no Brasil sabemos que quem paga e apodrece na cadeia é o pobre. O rico não fica muito tempo.

As fotos e vídeos podem ser vistos no Instagram e no Facebook nas páginas do “Kiss: Que não se repita”. A exposição permanecerá no Corredor Arte do Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas até o dia 16 de fevereiro, das 7h às 22h, na rua Professor Araújo, 538.