Não há solução para o problema da cracolândia sem uma reestruturação da sociedade. Por Leo Mendes

Atualizado em 30 de maio de 2017 às 12:20
A PM na “Operação Cracolândia” de Doria

Fui acusado de não ter proposta para acabar com a cracolândia, ao contrário do prefeito de São Paulo João Dória, que tomou medidas concretas como demolir casas com gente dentro e pedir autorização da Justiça para internar à força os desabrigados.

Eu sou obrigado a reconhecer que dessa vez os que me criticaram tem razão, eu não tenho nenhuma proposta. Ou nenhuma que caiba numa espécie de conclusão de redação do ENEM, em que depois de alguns parágrafos de desenvolvimento do problema você apresenta as soluções.

Tentar resolver o problema da cracolândia em dois parágrafos ou mesmo um artigo de jornal seria me unir a João Dória. Seria uma fraude, uma farsa ridícula, além de arrogância, demagogia ou estupidez.

E mesmo Dória sabe que não está resolvendo o problema da cracolândia, e sim dos moradores, comerciantes e investidores de locais próximos a ela, e, claro, enganando trouxa.

Mas é isso o que querem muitos de seus eleitores. Não ter que olhar para o problema, escondê-lo por trás dos muros de prisões psiquiátricas, e fingir que o problema já não existe.

Se não fossem cristãos temerosos, é bem possível que clamassem sim pela câmara de gás, ou dissessem que cracudo bom é cracudo morto.

Mas isso também não é resolver o problema.

Talvez na verdade não esteja nem claro para muitos qual é o problema, e nisso quem sabe eu possa ajudá-los.

O problema é que não adianta internar a força ou exterminar toda a cracolândia, porque pouco tempo depois ela estaria lotada outra vez. O problema é que se não mudarem as condições que produzem o efeito, combater o efeito é enxugar gelo.

E que condições são essas? Será que é mesmo preciso dizer?

Talvez seja. Talvez não adiante, e quem não as enxerga nas ruas, não irá enxergá-las nesse texto.

Quem sabe ajude tentar se colocar no lugar do viciado em crack que você quer ver internado à força ou morto.

Pensar então em como deixar aquela vida, movida à autodestruição eufórica do crack e ir procurar um emprego.

Um emprego em que você trabalhará 8h por dia, 6 dias por semana, e receberá o necessário para comprar comida e alugar um barraco numa favela distante em que só chega ônibus e trem superlotado. Sem saneamento básico, sem saúde pública e numa guerra sem fim.

Se economizar, em pouco tempo poderá até comprar uma televisão, e assistir à novela reproduzir a mediocridade cotidiana do nosso tempo, das nossas elites, da classe média.

O pobre na novela é sempre feliz ou bandido. As empregadas domésticas são obedientes, uniformizadas e adoram seus patrões. Quando aparece um viciado em crack é interpretado pela loira Grazi Massafera, e sempre dá a volta por cima numa mensagem de paz e esperança.

O desastre social não fica bem na televisão. As ruínas do progresso são varridas para debaixo do tapete que pisamos, por um prefeito fantasiado de gari. Ou então são escondidas atrás de muros pintados de cinza ou vermelho de sangue.

Mas é evidente que muitos conseguem aceitar essa realidade e são mais felizes nas favelas em guerra do que muitos em condomínios nos Jardins.

É evidente também que muitos não conseguem. E mais evidente ainda é que a miséria, a desigualdade, a falência social e a cracolândia  andam de mãos dadas. Que não há cracolândia na Dinamarca.

Que não há solução que não passe por uma reestruturação completa da sociedade, ou ela continuará a produzir todas as condições que produzem a cracolândia.

Então querido crítico, você tem toda a razão, eu não tenho plano imediato para resolver o problema da cracolândia, porque acredito que isso é sempre demagogia. Talvez o máximo que eu me aproxime de uma proposta concreta seja ao lembrar do filósofo anarquista Mikhail Bakunin.

Ele disse que há três formas de se lidar com uma realidade doentia: a taverna, a igreja ou a luta social, sendo ilusões as duas primeiras.

O crack é a ilusão de quem já não tem nenhuma esperança na realidade.