“Não transformamos covid-19 em arena de batalha como no Brasil”, diz ao DCM cientista político de Portugal

Atualizado em 10 de dezembro de 2020 às 14:06
Antonio Costa, primeiro-ministro português, foi reeleito em 2019. Foto: Arne Müseler/Wikimedia Commons

A esquerda se debate pelo mundo, cedendo governos à direita. Foi assim na França em 2017 e no Brasil de 2018. O cenário se repetiu em 2020, em capitais como o Rio de Janeiro. Em Portugal, foram necessários nada menos do que 40 anos para que os partidos de esquerda chegassem a um comum acordo e governassem pela primeira vez o país, em 2015.

Sob a forma de uma coalizão, a “geringonça”, apelido dado pela direita à aliança formada pelo Partido Socialista, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português, foi reeleita em 2019.

Em entrevista ao Diário do Centro do Mundo, André Freire, professor catedrático de Ciência Política no Instituto Universitário de Lisboa, explica as razões da recondução. “A inversão de políticas de austeridade, ao contrário do que apregoava a direita em 2015, não gerou o caos, nem foi um problema. Ao contrário, houve crescimento econômico”.

O país intriga. Mesmo após um dramático programa de austeridade implementado pela coalizão direitista PSD-CDS Partido Popular, levando a cortes de salários e aposentadorias entre 2011 e 2014, a extrema direita não vingou, diferentemente dos outros países europeus e do Brasil.

A tentativa não faltou. O partido “Chega” se apresentou à sociedade em 2019, mas só obteve uma cadeira na Assembleia da República.

Na gestão da Covid-19, a terrinha também parece ter se saído melhor. O índice de mortalidade do país, de 49 por 100 mil habitantes, é menor do que na Suíça (64), na Suécia (69), na vizinha Espanha (99) e um terço da Bélgica (152), segundo dados compilados pela universidade americana Johns Hopkins. No Brasil, o índice é de 85. André Freire aponta pistas para o “segredo” português.

DCM: Seu primeiro-ministro, António Costa, foi reconduzido ao cargo nas eleições do ano passado, o que foi interpretado como a maior derrota da direita desde a redemocratização. A que se deve esse resultado?

André: Não sei se foi interpretado como a maior derrota da direita desde a redemocratização. Não tenho ideia de que tenha sido uma derrota assim tão humilhante. Agora, o Partido Socialista melhorou seu resultado face a 2015. O Bloco de Esquerda permanece estável. Junto com seu aliado permanente, que são os Verdes, o Partido Comunista perdeu alguns votos.

A recondução de António Costa resultou de uma avaliação positiva, de que fez uma inversão do rumo das típicas políticas de austeridade que implicaram cortes de salário, cortes de pensões e por outro lado redução do imposto das empresas e bancos, processos extensos de privatização, diminuição da proteção das leis de trabalho, demissões. Isso foi possível pela aliança do Partido Socialista com os partidos situados à sua esquerda, ou seja, o Bloco de Esquerda, Comunistas/Verdes.

Essa aliança funcionou. A legislatura 2015-2019 conseguiu cumprir seu mandato até o fim. Quanto aos resultados econômicos, houve a inversão das políticas de austeridade, embora não tenha havido aumento de salários.

A inversão dessas políticas de austeridade, ao contrário do que apregoava a direita em 2015, não gerou o caos, nem foi um problema. Ao contrário, houve investimento e crescimento econômico.

Houve o cumprimento das regras de tipo orçamental, ditadas pela nossa participação da União Europeia. Isso resultou numa avaliação globalmente positiva do exercício político da maioria de esquerda.

Também é preciso lembrar que em 2015 a direita ganhou as eleições, mas perdeu muitos votos em relação a 2011, então ficou com uma maioria relativa, mas não tinha maioria no parlamento.

Como os partidos de esquerda foram capazes de encontrar um governo concertado, embora fosse um governo minoritário, pela primeira vez em cerca de 40 anos a esquerda conseguiu entender-se para governar. Entendeu-se e fez maioria. O Partido Socialista precisava ser o segundo mais votado e liderou o governo em 2015 e 2019.

Foi reconduzido, aumentou seu desempenho e o Bloco de Esquerda manteve resultados estáveis entre 2015 e 2019.

O professor André Freire. Foto: Expresso das Ilhas

DCM: Os partidos de esquerda não conseguem se unir em diversos países da Europa e fora dela, como no Brasil. Como foi possível em Portugal construir uma aliança de esquerda?

André: Não é verdade que só em Portugal haja uma coalizão de esquerda. Isso aconteceu na Espanha, entre o Partido Socialista e Unidas Podemos, e aconteceu também na Itália. Aconteceu na Islândia. Mas o que ocorre é que até 2015 os partidos de esquerda (em Portugal) formavam aritmeticamente uma maioria mas não governavam porque não conseguiam se entender. Em 2015, eles se entenderam e passaram a governar.

DCM: Mesmo tendo governado em aliança com o Partido Comunista Português, António Costa é visto por muitos portugueses como moderado. O que explica essa percepção?

André: O Partido Socialista português é na família socialista europeia o partido mais centrista. Ao mesmo tempo, o Partido Comunista e a coalizão de esquerda não são radicais. O discurso da ditadura do proletariado ficou no passado. O Partido Comunista se modernizou. Além do mais, há um controle da União Europeia.

DCM: Por que Portugal não tem uma extrema direita poderosa, o que faz dele uma “exceção” nesse sentido?

André: É uma pergunta difícil de responder. Estatisticamente, ela é uma força irrelevante em Portugal, é uma direita radical, populista e antissistema, que diz tudo e seu contrário. No Parlamento, ela só tem um eleito. Um dos fatores é que não temos o fenômeno da migração como há em outros países europeus como a França.

Mas essa direita radical pode crescer. Em Açores, ela fez uma coalizão junto com os partidos de direita tradicionais. Pode ser que a direita tradicional acabe reforçando a direita radical como aconteceu na Espanha, onde o Vox acabou fortalecido pela aliança com os partidos de direita tradicionais na Andaluzia, ou como no Brasil, onde governadores, como o de São Paulo, apoiaram inicialmente Bolsonaro, e depois pularam do barco.

DCM: De um certo modo, a sociedade portuguesa está satisfeita com as opções políticas que têm?

André: De uma certa forma, sim. Os portugueses não estão fazendo um voto de contestação.

DCM: Como você avalia a gestão portuguesa da Covid-19?

André: Portugal inicialmente geriu a crise muito bem. As forças políticas não transformaram a crise sanitária numa arena de batalha política. Todos os partidos, da esquerda à direita, se uniram e aprovaram os projetos de lei do governo. O país agiu cedo, preparando-se para a chegada do vírus, observando o que aconteceu na Espanha e na Itália. Isso explica o sucesso de Portugal.

No outono, como nos outros países europeus, o vírus se propagou com mais força, o que nos levou a adotar um novo confinamento. Agora, entramos numa grave crise econômica, em que as pessoas vão se mobilizar para não morrer de fome. Claro que é uma maneira metafórica de dizer. Mas do ponto de vista sanitário, eu avalio como uma boa gestão. Não foi como no Brasil ou nos Estados Unidos, onde a crise sanitária foi partidarizada.

A maioria da população também respeitou as medidas sanitárias. Temos um senso cívico, de responsabilidade.

DCM: A migração brasileira parece incomodar uma parte da sociedade portuguesa, visto que pichações racistas vêm sendo flagradas recentemente. É um fenômeno que deve se transpor para a política governamental?

André: Um colega seu me apresentou dados sobre esse tema, mas não acredito que seja um fenômeno relevante. Não temos problemas com a migração brasileira. Claro que se a crise econômica se aprofundar, se perceber-se que não há emprego, a questão pode se tornar preocupante. Mas mesmo o Chega não tem problemas com a migração brasileira.

Eles são contra ciganos e islâmicos. Mas mesmo os muçulmanos são muito bem integrados na sociedade portuguesa. Não é como em outros países, como a França, com as populações de origem magrebina. Nós não temos esse problema. Portanto não creio que na cidadania e na política, a migração brasileira se converta num problema.

DCM: Alguns analistas avaliam como positivo o silêncio do governo português em relação a Jair Bolsonaro. Você compartilha dessa análise?  

André: Não é apenas um silêncio. Ele é muito complacente. Marcelo Rebelo quis convidar Bolsonaro a Portugal. Temos laços históricos com o Brasil, falamos a mesma língua, temos boas relações.

Ao mesmo tempo, Portugal é um país pequeno diplomaticamente. Mesma coisa é com a China. Agimos com cautela. Bolsonaro foi eleito com uma ampla maioria. Mas creio que a política externa de Portugal está sendo muito complacente com um governo que faz discursos autoritários e favoráveis à ditadura.