Necropolítica e militarização da Saúde explicam “apagão” de dados, dizem sanitaristas. Por Erick Gimenes

Atualizado em 8 de junho de 2020 às 21:16
O Mistério da Saúde

Publicado originalmente no Brasil de Fato:

Por Erick Gimenes

O obscurantismo na divulgação de informações sobre a covid-19 no Brasil é resultado de uma política de saúde militarizada e que faz pouco caso da morte do povo, afirmam especialistas da área.

Depois omitir números sobre o novo coronavírus no país, na sexta-feira (5) e no sábado (6), a pasta comandada pelo general Eduardo Pazuello divulgou dados errados no domingo (7) – primeiro, informou que 1.382 mortes haviam sido registradas nas últimas 24 horas; uma hora e meia depois, retirou 857 pessoas da lista e oficializou a morte de 525.

Nesta segunda-feira (8), o Ministério da Saúde manteve o registro de 525 mortes e justificou, em nota, que a divulgação anterior foi uma “duplicação” em razão de erros cometidos pelas secretarias estaduais de saúde. No entanto, os dados não batem com o divulgado pelo Conass (Conselho Nacional dos Secretários de Saúde), que registrou 1.113 mortes no domingo.

Para o médico sanitarista Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde, a confusão criada com as informações é parte da “necropolítica” promovida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ou seja, o presidente despreza o poder letal do vírus em troca de manter sua ideologia em pé.

“É a institucionalização do “e daí?”. É trazer para dentro da administração pública, do comando do enfrentamento da pandemia, que deveria ser pautado apenas por aspectos técnicos e científicos, o posicionamento ideológico do presidente”, diz Chioro.

O ex-ministro da Saúde afirma que a transparência na informação é preceito básico para a gestão de saúde pública – ainda mais, ressalta ele, na pior crise sanitária da história brasileira.

“Em qualquer manual de saúde pública, a primeira orientação que se dá é tratar a informação da mais segura e transparente possível, para que, externa e internamente, não paire qualquer dúvida em relação aos acontecimentos e às tendências. A informação orienta a ação. A base da vigilância epidemiológica é transformar informação em ação”.

Embora municípios e estados mantenham as contagens locais, a uniformização dos dados oficiais é fundamental para que gestores e profissionais da saúde tomem decisões ao tratar infectados, de acordo com Chioro.

“A informação orienta o raciocínio clínico, inclusive na realização do diagnóstico. Claro que ela não é decisiva, mas é fundamental. Ele impacta desde a ação local dos profissionais de saúde, a confiança da população, naturalmente, fica profundamente abalada, e interfere na qualidade da decisão dos gestores”.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), endureceu o tom contra o governo em uma postagem na internet. Ele chamou de “perverso” o modo com que o Ministério da Saúde trata as informações

“Brincar com a morte é perverso. Ao alterar os números, o Ministério da Saúde tapa o sol com a peneira. É urgente resgatar a credibilidade das estatísticas. Um ministério que tortura números cria um mundo paralelo para não enfrentar a realidade dos fatos”, criticou.

“Instalação militar”

O médico e pesquisador Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), afirma que a sonegação de informações é uma postura típica de ministérios militares, como o que Ministério da Saúde tem se tornado – hoje, são 23 membros das Forças Armadas em cargos importantes da pasta.

“Existe uma diferença muito grande entre como deve ser gerenciada a informação, os dados, em um Ministério da Saúde e em um ministério militar. Numa instalação militar, eles têm uma tendência ao segredo muito maior do que na Saúde. O Ministério da Saúde se tornou uma instalação militar. Isso faz com que o tratamento de dados da pandemia siga um modelo, uma conformação, como se fosse tratado num hospital militar, numa instituição militar.

“O Ministério da Saúde se tornou uma instalação militar. Isso faz com que o tratamento de dados da pandemia siga um modelo, uma conformação, como se fosse tratado num Hospital Militar”.

Desde que Pazuello assumiu o comando interino da Saúde, em 16 de maio, o governo tenta emplacar mudanças na divulgação de dados – antes, os números eram divulgados pontualmente às 17h; desde que o general assumiu, os dados passaram ser repassados com consecutivos atrasos.

Para Guimarães, o mistério sobre os números resulta em profissionais inseguros e, por consequência, incapacidade de avançar para um cenário melhor, com menos mortes e casos confirmados.

“O combate à pandemia, não só em nível nacional, mas no nível local também, depende das informações dos dados para se saber como as coisas estão evoluindo. Essa ignorância dificulta nesse ponto de vista: se eu não sei o que está acontecendo, é muito difícil eu poder programar o que eu tenho que fazer”, afirma ele.

“Se eu não sei o que está acontecendo, é muito difícil eu poder programar o que eu tenho que fazer”.

Como não se pode confiar no governo federal, o vice-presidente da Abrasco sugere que população e profissionais da saúde considerem oficiais dados divulgados na plataforma do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

“Enquanto o Ministério da Saúde permanecer nessa sonegação de informação, a Abrasco entende que é a informação do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde que deve cumprir o papel de fornecer uma informação oficial”, aconselha Guimarães.