Nem generais reconheceram ou defenderam tortura, como faz Bolsonaro, diz pesquisadora

Atualizado em 26 de setembro de 2019 às 23:23

Publicado na Rede Brasil Atual:

Os militares que estiveram à frente do governo durante a ditadura talvez se espantassem com o atual presidente, que não só assume a prática como faz exaltação da tortura, observa a cientista política Glenda Mezarobba, que participou ontem (25) de seminário promovido pelo Instituto Vladimir Herzog (IVH) com o tema “violência de Estado e impunidade”. Pesquisadora do movimento pela anistia, ela considera que “a Justiça ainda segue devendo muito à sociedade brasileira nessa temática”.

“Durante a ditadura, nenhum general, nenhum ocupante do governo, assume que havia tortura”, disse Glenda. “Nenhum reconheceu, muito menos fez apologia”, acrescentou.

A pesquisadora lembrou que havia reivindicação por anistia já no início do golpe, em 1964. “Isso é muito peculiar da ditadura brasileira.” Apenas nos primeiros meses, foram demitidos 15 mil servidores e realizadas 5 mil investigações, envolvendo aproximadamente 40 mil pessoas.

A  Lei 6.683 foi aprovada em agosto de 1979, ainda sob o regime autoritário – em março, havia assumido o poder João Baptista Figueiredo, o último dos presidentes-generais, com mandato até 1985. “A lei tramita no Congresso durante a ditadura e acaba adquirindo um verniz democrático. Foi aprovada nos termos que a ditadura queria”, afirma a cientista política e conselheira do IVH.

Para ela, o regime foi hábil ao “capturar” a bandeira da anistia. Mais que esquecer, o objetivo era silenciar a respeito. “A ditadura foi tão eficiente que a lei praticamente não foi testada nos tribunais”, diz. O arranjo institucional dificultou a ação das famílias de vítimas. Além disso, avalia, o Ministério Público Federal demorou a iniciar as ações em que pede responsabilização dos agentes do Estado. E quase todos os casos tem esbarrado no Judiciário, que alega justamente a existência da Lei de Anistia para não acatar as denúncias. Até maio, foram 40 denúncias, contra 60 agentes.

Uma exceção foi recente decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), que em agosto, por maioria, tornou réu o sargento Antonio Waneir Pinheiro de Lima, acusado pelo MPF de sequestro, cárcere privado e estupro de Inês Etienne Romeu, em 1971 A militante política passou  meses presa na chamada Casa da Morte, em Petrópolis (RJ).

A desembargadora Simone Schreiber entendeu que os fatos se configuram como crimes contra a humanidade, nos termos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), da qual o Brasil é signatário. São crimes que não prescrevem e não podem ser enquadrados na Lei de Anistia. Ela citou ainda condenações sofridas pelo Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por não apurar crimes cometidos por agentes da ditadura. Única sobrevivente da Casa da Morte, Inês morreu em 2015. “A lei (de anistia) é incompatível com a normativa internacional”, afirma Glenda. “O Estado não pode perdoar seus próprios agentes.”

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a Lei de Anistia, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, da Ordem dos Advogados do Brasil. Há recursos pendentes.

Outro convidado do seminário, o advogado argentino Luciano Hazan, membro do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados da Organização das Nações Unidas (ONU), esse tipo de prática se caracteriza pela impunidade. “Não é um problema do passado”, afirmou, apontando “obstáculos ao avanço da Justiça que permitem a permanência da impunidade”.

Entre esses obstáculos, citou Hazan – que já defendeu as Avós de Praça de Maio, na Argentina –, estão um sistema judicial deficiente, uma certa obediência hierárquica (a alegação de cumprimento de “ordens superiores”) e mesmo falta de recursos. Segundo ele, é necessário implementar políticas públicas que deem impulso e garantias à investigação sobre esses desaparecimentos. Uma dificuldade adicional é a falta de tipificação legal desse tipo de crime. “Sem a tipificação, o que acontece é a ‘invisibilização’”, afirma o representante da ONU.

Também é preciso destacar o papel dos meios de comunicação. Durante a ditadura argentina (1976-1983), as mães e avós da Praça de Maio, que circulavam diante da Casa Rosada, sede do governo, eram chamadas de “las locas de Plaza de Mayo”. “Depois, tornaram-se um símbolo nacional.”