Neonazistas desfilam em Paris com autorização da polícia e depois fazem festa

Atualizado em 9 de maio de 2023 às 16:49

Centenas de neofascistas circulando livremente pelas ruas de Paris. As imagens do último dia 7 no burguês distrito 5 da capital francesa chocam não só pelo perfil dos manifestantes, em sua maioria homens brancos encapuçados vestidos de preto. Dissimular o rosto integralmente é proibido na França, mas parece que uma exceção foi aberta naquele dia.

Choca o tratamento policial, restrito a uma mera escolta. Um contraste com as proibições de determinadas manifestações contra a reforma da previdência imposta pelo presidente Emmanuel Macron. E com as bombas de gás lacrimogêneo lançadas contra as últimas. Uma violência policial legitimada pelo governo por se tratar de “black blocs de extrema esquerda”, ou “black burgueses”, como disse um dos ministros. Sindicalistas mutilados que o digam, como Sébastien, piloto ferroviário que perdeu um olho depois que uma granada explodiu em plena manifestação contra a reforma da previdência do presidente francês.

Às vésperas da celebração da derrota dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, o site francês Mediapart descobriu que dois dos presentes no ato neofascista de sábado são ex-colaboradores de Marine Le Pen, a líder da extrema direita do país. E que grupos neonazistas fizeram sábado uma festa clandestina em um local dedicado à memória do holocausto.

Marcha neofascista

Circulam pela internet imagens do repórter do Mediapart sendo intimidado pelos manifestantes. “Yann Castanier foi intimidado e ameaçado várias vezes e teve de dar sequência a seu trabalho sob proteção policial”.

De acordo com o Mediapart, um policial disse ao jornalista que não teriam capacidade de garantir sua segurança se os membros do ato o atacassem.

Para quem viu a escolta policial dos golpistas brasileiros do 8 de janeiro, fica a dúvida perturbadora também no caso da França: a polícia age pela segurança da sociedade ou como parte dos atos neofascistas?

Segundo a reportagem de Marine Turchi publicada no Mediapart no último dia 7, um dos neofascistas no ato de sábado é Axel Lousteau, conhecido de Marine Le Pen desde os tempos da graduação em Direito na Universidade Panthéon-Assas. O veículo explica que ele forneceu apoio financeiro e político à deputada.

Primeiro, como fundador de uma empresa de segurança e impressão que trabalhou para o então partido Fronte Nacional (hoje União Nacional). Em segundo lugar, como tesoureiro do partido Jeanne, uma espécie de satélite da União Nacional. Foi vereador pelo partido de Marine e coordenou o setor financeiro da campanha da extremista em 2017.

O segundo aliado lepenista seria Olivier Duguet, que segundo o Mediapart fraudou o seguro desemprego da França em 2012. Ele atuou como tesoureiro do partido Jeanne, uma referência à Joana d’Arc, mito “libertador” da União Nacional da França da dominação estrangeira, uma instrumentalização para massacrar e expulsar a imigraçao africana do país.

No domingo, os lepenistas faziam parte do coro que gritava “Europa, revolução, juventude”.

“A manifestação, autorizada pela polícia francesa, ocorreu num clima de grande hostilidade à imprensa e escoltada por um efetivo policial subdimensionado considerada a sua periculosidade”.

A polícia se defende dizendo que sua conduta é “adaptada” e que nos anos anteriores “não houve nenhum transbordamento ou problema à ordem publica”. Como nos atentados golpistas do 8 de janeiro no Brasil, fica uma duvida quanto à ação da polícia na França: a polícia age como escolta ou manifestante?

O repórter cinematográfico do Mediapart precisou sair da manifestação com escolta policial, que, segundo o site, ajudou a esconder a placa de seu carro, depois que ele foi fotografado pelos manifestantes. Ameaças de morte que seriam recorrentes da parte dos extremistas de direita, que veem nos jornalistas um alvo preferencial.

Marine Turchi indica que as figuras identificadas no ato contradizem a narrativa do partido de extrema direita, que desde que passou a ser dirigido por Marine Le Pen em 2012 tenta se passar por um partido convencional. Na França, a estratégia é chamada de “desdiabolização”.

Há alguns anos, jornalistas da França infiltrados no atual União Nacional mostraram a porosidade que existe entre o partido e movimentos antissemitas e neonazistas. Diante das câmeras, as lideranças atuais ordenam a aparência de tolerância em questões como os direitos da população LGBT. Mas por trás das câmeras, parte da militância se desloca dos espaços do partido para se reunir em bares com células neonazistas. A dinâmica parece persistir.

“Vejo vocês em breve, França”: Em sua conta no Facebook, grupo musical italiano Katastrof agradece presentes em show realizado perto da capital francesa, usando a hashtag “rock ariano” (aryan rock, em inglês). Segundo Mediapart, festa contou com diversas saudações nazistas. Na imagem, fica clara associação com marcha neofascista realizada na tarde anterior



Festa neonazista

Segundo o Mediapart, a manifestação de sábado continuou numa festa neonazista na periferia de Paris, em um espaço da prefeitura da cidade de Saint-Cyr-L’Ecole dedicado à memoria do holocausto. Na cidade, fica uma das principais escolas militares do pais, a Ecole Spéciale Militaire de Saint-Cyr.

Uma reportagem de Donatien Huet publicada no portal nesta quinta-feira aponta que os militantes faziam saudações nazistas durante a festa e que a prefeitura, responsável pelo espaço, governado pelo partido de direita convencional UDI, disse que havia sido alugado para um “aniversario” e que estava “revoltada” com as imagens.

De acordo com a publicação, o panfleto de divulgação da festa retoma o lema nazista “Honra e fidelidade”. Sua organização teria sido fruto de uma associação de células neonazistas que se comunicam principalmente por Telegram.

O encontro se revela de dimensões internacionais. A publicação descobriu que um dos grupos musicais que aparece no panfleto, o Katastrof, se classifica como “rock ariano” e já se apresentou em países como Bulgária e Portugal. Nas redes sociais, ela identificou comentários no Facebook de um dos vocalistas de louvor ao poder dos brancos (“white power”, em inglês) e de desprezo pela França “cheia de negros”.

Os símbolos dos “artistas” presentes como seus nomes, no caso do Légion 88, sao interpretados como uma alusão a Heil Hitler, dado que a letra H é a oitava do alfabeto. O apelo à morte de esquerdistas faz parte do repertório.

Questionada pela reportagem, a polícia da região nada respondeu sobre o evento.

Huet observa uma proliferação de shows e eventos neonazistas pela França, alguns chegando a ser proibidos pelas autoridades e outros escapando de qualquer controle.

Governo propício

O ambiente político e a estratégia do governo Macron para “combater” a extrema direita só parecem favorecer a eclosão do movimento neofascista.

Primeiro, nos debates com em que seu ministro do Interior Gérald Darmanin qualifica Marine Le Pen de “mole” em relação à imigração. O discurso que se instala a partir daí no cenário político dos mais fortes (o governo e a extrema direita) é a de um discurso único em torno de um inimigo comum, o imigrante, em particular africano. A direita tradicional que esfacelou nas últimas eleições com menos de 5% dos votos abraça esse discurso, na expectativa de voltar ao poder.

Em segundo lugar, a estigmatização promovida pelo governo do presidente Emmanuel Macron dos movimentos de contestação à reforma da previdência que aumentou a idade mínima para se aposentar de 62 para 64 anos enfatizando as quebras de vidraças e qualificando seus autores de “block burgueses”, numa alusão a “black blocs” como forma de desqualificá-los só reforça a construção de um outro inimigo perigoso para a sociedade, o da esquerda radical.

O que especialistas em serviços de inteligência apontam é que o terrorismo de extrema direita é na verdade uma das maiores ameaças à sociedade francesa.

Para os brasileiros que a direita tomar as ruas e levar a extrema direita ao poder, ver a ultradireita (neofascista e neonazista) desfilar aos olhos de todos na mais absoluta liberdade na França indica um movimento que vai numa direção muito perigosa.