Ninguém é insubstituível, mas …

Atualizado em 11 de fevereiro de 2022 às 18:38
Camarinha e eu

UM EDITOR DEVE ter na arte um parceiro, mas jamais pode esquecer a hierarquia e esquecer a quem cabe a palavra final.

Tive, em minha carreira, o melhor diretor de arte que um editor poderia ter: Píndaro Camarinha Sobrinho.  Os anos 90 da Exame levam a marca de Píndaro. “Sou da solução, não do problema”, gostava de dizer Píndaro. É um mote que deveria ser seguido por todos numa redação, mas o fato é que costumam ser poucos os seguidores.

Píndaro aliava rapidez, praticidade, bom gosto, senso de humor,  auto-confiança  e uma extraordinária inteligência emocional que não o fazia desabar quando uma capa que fazia era derrubada por mim. Uma vez que confiava em meu julgamento, ouvia as ponderações, colocava as suas próprias, e retornava ao trabalho para fazer o que ficara faltando.

Intuitivo, muita prática e pouca teoria, Píndaro foi o diretor de arte que mais perto chegou da designação de gênio com quem trabalhei.

Fomos companheiros nas madrugadas na Veja nos anos 80. Tornamo-nos amigos. Píndaro era um ótimo companheiro de file à parmegiana, chope e steinhegger nos finais de fechamento no Alemão, o ponto de encontro dos fechadores da Veja naqueles dias. Sinval, o garçom, era um mágico para contar com precisão a quantidade de chopes que cada um de nós tomava. Nem sempre era fácil deixar o Alemão. Uma vez, já sábado de manhã, me sentei ao volante e simplesmente não consegui fazer nada, sequer ligar o carro. Errara no steinhegger, provavelmente.

A amizade perdurou quando nos separamos, ele na Veja, onde se tornaria diretor de arte, e eu na Exame, da qual viraria editor. Píndaro frequentava minha sala no BB2 do prédio da Abril na Marginal do Tietê, um anexo soturno para chegar ao qual você tinha de vencer um demorado caminho  que passava pela gráfica com todo o seu estrépito e calor.

Num determinado momento Píndaro perdeu a alegria de trabalhar. Houve uma mudança na direção da Veja e ele não gostava do estilo dos novos chefes, Mario Sergio Conti e Tales Alvarenga. “Nogueira, eles não explicam o que querem e eu acabo fazendo dezenas de capas, que vão sendo derubadas sem que eu entenda”, ele me disse certa vez. Píndaro é a única pessoa que me chama de Nogueira. Depois de ter trabalhado sob  Guzzo e seu enorme poder de facilitar as coisas, os fechamentos na Veja tinham se tornado um drama para Píndaro.

O problema  que ele encontrava lá era uma solução para nós na Exame.

Levamos Píndaro para a Exame, onde um ciclo novo de beleza e inventividade em nossas páginas se inauguraria graças a seu talento notável. Ele fez uma reforma gráfica na revista e, ao longo de seus anos, contribuiu decisivamente para algumas das melhores capas da história da Exame.  É dele uma capa em que criticávamos auditores que haviam deixado passar barbaridades em balanços de grandes empresas. O título era meu: “Para que servem os auditores?” A ilustração foi idéia de Píndaro: uma conta simples em que havia um erro grosseiro, com os números parecidos com os feitos por uma criancinha.

Com Píndaro e Berê: nunca ri tanto, exceto na infância

“Brilhou”, disse a Píndaro quando ele me mostrou o esboço da capa. Eu reproduzia uma frase marcante dele próprio. Píndaro, quando via alguma coisa boa, dizia instantaneamente: “Brilhou!” É atributo dos grandes jornalistas dizerem expressões que acabarão se consagrando na redação, e serão repetidas por muitos anos sem que as pessoas saibam de onde vieram.

Boemio no limite, Píndaro frequentemente esticava os fechamentos em bares e restaurantes nos quais sabia que haveria um prato de comida e alguma bebida quente o esperando.  Voltava para a redação, invariavelmente, antes de ir para casa. Queria se impregnar do “cheiro da redação”, como dizia, com charme e graça, um sorriso nos lábios.

Uma única vez o vi alquebrado moralmente em tantos anos juntos. “Nogueira, estou com um problema”, ele me disse. Eu já sabia o que era antes que ele me contasse. Via nele a mim próprio alguns anos antes. Píndaro estava vivendo uma paixão neurótica e pagava seu alto preço. Tentei ajudar meu amigo com minha própria experiência.  “Paciência que uma hora passa”, disse várias vezes a Píndaro. Passou.

Nossa parceria tinha uma terceira perna num dos jornalistas mais sensatos e inteligentes com quem trabalhei, Sérgio Berezovsky. Berê, como o chamava e ainda chamo, era o responsável pelas fotos na Exame. Também ele trabalhara na Veja na década de 1980. Discreto, reservado, tímido, Berê era o oposto de Píndaro em muitas coisas. Em comum tinha uma sensibilidade formidável para identificar coisas interessantes para o leitor e uma obsessão com qualidade editorial. Sua contribuição ia muito além da fotografia. Era previsível que um dia ele cruzasse a fronteira que ia da foto para a redação. Hoje, Berê é diretor de redação da 4 Rodas.

Saíamos muito os três. Muitas vezes, no final da tarde, íamos comer um xis salada no Hobby, uma lanchonete perto da Exame. Numa determinada fase, nos enfrentamos ferozmente nas pistas de kart que tomaram São Paulo no final dos anos 1990. Em pleno fechamento, escapávamos por algumas horas para correr e, assim, mitigar as tensões. Voltávamos suados, relaxados, sujos de graxa às vezes — e felizes. Posso afirmar sem risco de erro que, fora obviamente meu chefe Guzzo, os dois foram meus interlocutores mais importantes e influentes naqueles dias épicos em que renovávamos o jornalismo de negócios no Brail como se estivéssemos apenas nos divertindo.

Rio ainda hoje ao lembrar de Píndaro, com um capacete que mal cabia em sua cabeça, olhando para trás nas disputas sem perceber que eu já o ultrapassara fazia tempo e estava perto de dar uma volta nele. Berê, pesado, só abria caminho para mim, e mesmo assim contrariado, quando o fiscal depois de mostrar a bandeira azul ameaçava entrar na pista.  Outros amigos da Exame participavam das corridas, como Paulinho Cardoso e Luiz Salomão. Algumas vezes eu escrevi o relato das corridas, como se fosse um redator esportivo amador. Paulinho fazia o design e colocava o texto numa página que, depois, circulava entre nós. Uma vez, quase provoco uma briga entre Píndaro e Berê. Dei numa corrida um toque proposital que tirou Píndaro da pista. Ele não percebeu quem fora. Me perguntou e apontei, impassível, para Berê. Capacete sob o braço, como um profissional, ele foi tirar satisfações de Berê. Depois de alguns resmungos soube que o criminoso fora eu. Caímos todos na gargalhada.

Sob um certo aspecto, a Exame parecia um  parque de diversões. Uma frase que me marcou me foi dita pelo jornalista André Lahoz, editor de economia então e hoje redator-chefe — um talento sorridente do jornalismo de negócios que trouxe para o debate econômico nacional, nos anos 90,  a voz enriquecedora do economista Alexandre Sheikman quando os jornalistas entrevistavam os suspeitos de sempre. André, um são-paulino fanático a exemplo de seu pai e seu tio, José Roberto e Luís Carlos Mendonça de Barros, trabalhara na Folha antes de ir para a Exame. “Domingo à noite era um drama para mim”, me disse uma vez ele. “Agora não.” A cena inesquecível de André, na redação, foi a comemoração corinthiana da duríssima vitória nos pênaltis do Brasil sobre a Holanda na Copa de 1998. André se deitou no chão no festejo, como se estivesse tendo um ataque epilético, tal a euforia.

Acompanhamos a escalada da Brahma de Marcel Telles

A Exame, mais que uma revista, foi uma festa para mim. Não me lembro de outro período em inha vida, salvo a infância, em que tenha rido tanto.

Uma vez, Píndaro ficou amuado e falou em sair da Exame. Dei folga a ele. Quando ele retornou, sua mesa estava cheia de flores e um bilhete meu endereçado ao “melhor diretor de arte do Brasil”. Os olhos de Píndaro, profundamente míopes, ficam úmidos quando ele recorda esse episódio.

Píndaro acabou montando um escritório que logo o absorveria  mais e mais. Não demorou e ele teve que fazer uma penosa escolha  — sei quanto foi – entre seu emprego e seu futuro como empreendedor. Quando Píndaro deixou a Exame,  escrevi uma carta de editor para ele. Eu dizia que, embora não houvesse ninguém insubstituível, a vida sem Píndaro ficaria menos colorida e vivaz na Exame. Este texto, emoldurado, está na sala de Píndaro em sua empresa.