No Chile, a mãe de todas as greves de caminhoneiros, que ajudou a derrubar Allende. Por Clayton Netz

Atualizado em 30 de maio de 2018 às 0:11
Caminhoneiros parados no Chile em 1972: cevando o golpe

POR CLAYTON NETZ

Em menos de dez dias, a paralisação nacional dos caminhoneiros colocou o Brasil em polvorosa, afetando praticamente todos os setores de atividade.

Não por acaso, caos foi a definição mais empregada pelos meios de comunicação para explicar a situação criada pelo movimento, que aparentemente acabou de sepultar o que restava do governo Temer.

Ao provocar em tempo recorde o desabastecimento de combustíveis e alimentos, prejudicar a circulação de pessoas e mercadorias, levar dezenas de setores diferentes da economia a interromperem ou reduzirem drasticamente suas atividades, a greve de maio instalou, inegavelmente, a  insegurança e a incerteza diante de seus desdobramentos entre a população.

Por suas dimensões, a mobilização dos transportadores de carga, que já tivera uma tentativa de menor intensidade em  2015, ainda no governo Dilma Rousseff, lembra um evento ocorrido há 46 anos no Chile do presidente socialista Salvador Allende.

Deflagrada em 9 de outubro de 1972, a greve dos caminhoneiros chilenos durou nada menos de 26 dias, tempo suficiente para desorganizar a vida do país andino e criar as condições para o golpe de Estado que derrubou Allende no ano seguinte.

No entanto, ao contrário do que ocorre aqui, a ação dos grevistas chilenos não foi aceita passivamente pelo governo e por seus apoiadores do campo popular.

Ao contrário.

Enfrentado com firmeza por Allende, o “paro”, como se diz no Chile, “gerou uma mobilização colossal e criativa para enfrentar o desafio até então inédito de manter o país funcionando contra a tentativa patronal de paralisá-lo”, na avaliação do historiador chileno Jorge Magasichi,  professor do Instituto de Altos Estudos de Comunicações Sociais de Bruxelas.

Segundo Magasichi, a “greve de outubro”, cuidadosamente preparada durante quase um ano pelos sindicatos patronais, tomou  rapidamente os traços de uma insurreição que buscou a dissolução do governo de Allende, ou a fabricação de tamanha crise que provocasse uma “intervenção militar” (alguém já ouviu algo parecido por aqui?).

Ele destaca o papel decisivo da oposição, como a centrista Democracia Cristã e o direitista Partido Nacional, adversários desde sempre na política local, numa aliança batizada de Confederação Democrática, que utilizou sua maioria parlamentar para frear e inviabilizar as ações do Executivo, reforçada pela atuação inestimável da Justiça conservadora.

Não faltou, ainda, a milionária contribuição dos meios de comunicação, que detinham o controle majoritário dos jornais e rádios (a televisão ainda engatinhava e tinha um alcance pouco expressivo), capitaneados pelo grupo editorial El Mercúrio, um misto de O Globo e Estadão chilenos.

Segundo um estudo do próprio El Mercúrio, a oposição contava com 64% da imprensa, contra 23% dos governistas e 13% independentes.

O pretexto para a sublevação dos caminhoneiros chilenos contra o governo da Unidade Popular foi a tentativa de criação de uma estatal que concentrasse as modalidades de transportes aéreos, marítimos e terrestres na inóspita província de Aysén, semi-isolada na Patagônia,  povoada à época por apenas 6 mil habitantes.

Com essa população, pode-se imaginar que a frota de Aysen não passasse de uma centena de veículos.

Mas pretexto serve para ser pretextado e a oportunidade não escapou à recém-criada Confederación de Sindicatos de Dueños de Camiones de Chile, presidida pelo advogado León Vilarín.

Sob esse guarda-chuva abrigavam-se 165 sindicatos, que representavam 40 mil associados, donos de  56 mil caminhões.

Tratava-se de uma frota extremamente pulverizada — em média, 1,4 veículo por proprietário. A exemplo do que acontecia nos transportes de passageiros, não havia naquele começo dos anos 1970 grandes empresas no setor, o que dificultava uma intervenção mais efetiva do governo no caso de uma greve.

Cada dono de ônibus simplesmente levava seu caminhão ou ônibus para casa, impedindo sua requisição pelas autoridades.

Ex-militante do Partido Socialista, o mesmo de Allende, Vilarín mais tarde teve reveladas suas ligações com a CIA, que chegou a investir US$ 2 milhões (US$ 12 milhões em valores atuais).

Ao mesmo tempo, estava ligado ao movimento de ultra direita Patria y Liberdad, o braço armado do movimento grevista, responsável por sabotagem e ataques aos motoristas que não aderiram à greve.

Ou seja: ao contrário da greve iniciada na semana passada no Brasil, marcada pela descentralização das lideranças, havia um comando organizado e com autoridade reconhecida no “paro” do Chile. 

Detalhe: três semanas antes da deflagração da greve, o governo havia firmado um acordo com Vilarín,  concedendo um aumento de 120%  nos fretes e o congelamento dos combustíveis.

Diante da ilegalidade do movimento, Allende revidou decretando o estado de emergência em 12 das 25 províncias, estendido posteriormente a 20.

Carro sem gasolina em Santiago, resultado da greve dos caminhonheiros

Lá como aqui, os militares, que ainda se mantinham na legalidade, foram convocados a intervir. Como mostra Magasich, foi instaurado o patrulhamento das ruas e aplicados decretos de abertura dos estabelecimentos comerciais fechados. Na capital Santiago foi imposto o toque de recolher das 00h às 6h.

As iniciativas do governo, que além da convocação dos militares, chegou a escalar os motoristas dos serviços públicos para conduzir os veículos disponíveis, contaram na participação popular com um poderoso e decisivo reforço para combater o movimento golpista, que também preconizava a derrubada de Allende

Dezenas de milhares de estudantes dos dois principais centros de educação superior, a Universidade do Chile e da Universidade Técnica, ambas públicas, se engajaram no trabalho voluntário de carga e descarga das mercadorias transportada pelas ferrovias, que ainda continuavam funcionando, e da frota de caminhões dos proprietários que não aderiram à greve, as empresas estatais e nacionalizadas, além dos confiscados.

Para driblar o boicote da grande maioria do varejo privado e fazer circular as mercadorias – alimentos, principalmente — os trabalhadores das empresas públicas organizaram um sistema de vendas diretas aos comerciantes em funcionamento.

Outra alternativa foi a distribuição, através das Juntas de Abastecimento e Preços JAPs), criadas naquele mesmo ano para evitar que os produtos fossem desviados (acaparados, em espanhol)  para o mercado negro e pudessem chegar a preços oficiais aos consumidores.

No entanto, foi no interior das empresas que a reação  à paralisação dos caminhoneiros alcançou seu maior saldo. Na maioria daquelas em que a produção foi interrompida via locaute dos proprietários, seus funcionários responderam com a ocupação das fábricas, que continuaram operando.

Rapidamente, essa reação interna em cada local de trabalho deu lugar à formação dos chamados “Cordões Industriais” nos bairros fabris.

Encarregados de coordenar o funcionamento das indústrias, os “Cordões” cuidaram de tarefas que iam do fornecimento de matérias-primas e vigilância dos locais de trabalho para evitar atentados da direita, passando pela disponibilização de transporte para  os trabalhadores, já que os coletivos também aderiram ao movimento de Vilarín.

Quando o transporte coletivo se mostrava insuficiente, os trabalhadores não vacilavam em percorrer longas distância a pé para chegar a seus postos.

“Graças a eles, o essencial do aparato produtivo permanece ativo”, afirma o historiador Magasich. “Sem conseguir seu objetivo, a insurreição patronal retrocede.”

Mas não desiste. Apesar da derrota imediata e do recuo decidido na primeira semana de novembro, essa espécie de ensaio geral do golpe deixou marcas profundas e contribuiu enormemente para a deterioração da economia do Chile.

Dos 20% registrados em 1971, primeiro ano de mandato de Salvador Allende, 1972 terminou com uma taxa de inflação que beirava os 100% anuais, acelerando o desgaste de seu governo.

No ano seguinte, sempre capitaneados por Vilarín, os caminhoneiros voltaram à carga (sem trocadilho), com um novo “paro”, que terminou com a derrubada do primeiro presidente socialista eleito pelo voto na América Latina, interrompendo uma das democracias mais longevas da região.

Em seu lugar, instaurou-se uma das ditaduras mais criminosas do continente, encabeçada pelo general Augusto Pinochet, que por uma dessas ironias da História, foi um dos militares que estiveram ao lado de Allende no enfrentamento da greve de 1972 e na segunda, em julho de 1973.

Comandante do Exército, só desembarcou às vésperas do golpe de estado, em setembro, ao ser colocado na parede pelos conspiradores.

Mas essa já é outra história.

Em tempo: Com a volta da democracia, em março de 1990,  Vilarín mergulhou na obscuridade e no anonimato. Ao morrer, aos 80 anos de idade, em 1999, havia se tornado um personagem desprezado pela sociedade chilena, praticamente banido dos registros oficiais.

Mórbida semelhança